Democracia. A piada, por Mafalda.
Apontamentos Anarquistas

O Anarquismo e suas Aspirações – parte IX

Capítulo 3 – Democracia é Direta

     Por estes dias, as palavras parecem jogadas por aí como se fossem trocados. “Democracia” não é uma exceção. 

     Ouvimos demandas para democratizar tudo desde organizações nacionais e supranacionais até certos países até tecnologias. Muitos defendes que democracia é o padrão para um bom governo. Outros ainda alegam que “mais”, “melhor” ou mesmo uma democracia “participativa” são os antídotos necessários para nossos problemas. No coração desses sentimentos bem-intencionados porém mal guiados bate um desejo genuíno: ganhar controle sobre nossas vidas.

     Isso é facilmente compreensível dado o mundo em que vivemos. Eventos e instituições anônimas, frequentemente distantes – quase impossíveis de descrever, muito menos confrontar – determinam se e com o quê nós trabalhamos, se bebemos água limpa, ou se temos um telhado sobre nossas cabeças. A maioria das pessoas sente que a vida não é o que deveria ser; muitos reclamam do “governo” ou das “corporações”. Mas além disso, as fontes de nossa miséria social são tão mascaradas que podem até parecer amigas.

     Já que as causas reais parecem intocáveis e incompreensíveis, as pessoas tendem a deslocar a culta para alvos imaginários com uma face: indivíduos ao invés de instituições, pessoas ao invés de poder. A lista de bodes espiatórios é longa: de muçulmanos a negros e judeus, de imigrantes e gays, e assim por diante. É bem mais fácil gritar com aqueles que, como nós, tem pouco ou nenhum poder.

     Um desejo por comunidade – um lugar no qual podemos cuidar de nossa própria vida, compartilhá-la com outros, e construir algo junto que seja de nossa própria escolha – está sendo distorcido ao redor do mundo como nacionalismos, fundamentalismos, separatismos, e como resultado crimes de ódio, homens-bomba suicidas e genocídios.

     Comunidade não mais implica um rico reconhecimento do indivíduo e da sociedade: ela se traduz em uma batalha até a morte entre um pequeno “nós” contra outro pequeno “eles”, à medida em que as rodas da dominação rolam por sobre nós todos. Os sem poder atropelam os desempoderados, enquanto os poderosos seguem majoritariamente intocados.

     De forma mais grave, o horizonte de ação parece ter sido encurtado para uma dualidade pré-determinada pelo próprio sistema. A esquerda não vê escolhas “realistas” fora daquelas que são apresentadas de cima: organizações não-governamentais, participação do Sul global em corpos de tomada de decisão internacionais ou a reforma ou “enverdejamento” dos processos incorretos do capitalismo. Esta e outras demandas são o mínimo dentro do atual sistema. Estão muito longe de poderem ser considerados uma resposta liberatória. Elas trabalham dentro de uma noção circunscrita e neutralizada de democracia, na qual a democracia não é nem das pessoas, pelas pessoas, nem para as pessoas mas, ao invés, apenas supostamente em nome das pessoas.

     “No instante em que uma Pessoa dá a si mesma Representantes, ela cessa de estar livre”, proclamou Jean-Jacques Rousseau em “Do Contrato Social”. Liberdade, particularmente liberdade social, é claramente antitética ao Estado, mesmo um que seja representativo. No nível mais básico, a representação nos “pede” que doemos nossa liberdade para outrem; ela assume, em essência, que alguns devem ter poder e muitos outros não devem. Sem poder, igualmente distribuído entre todos, nós renunciamos a nossa própria capacidade de se juntar com qualquer um de forma a significativamente moldar nossa sociedade. Nós renunciamos a nossa habilidade de nos auto-determinar e, assim, à nossa liberdade. Assim, não importa quão iluminados os líderes possam ser, eles estão governando como tiranos assim mesmo desde que – nós, as pessoas – somos servis às suas decisões.

     Isso não quer dizer que um governo representativo é comparável com formas mais autoritárias de governo. Um sistema representativo que falha na sua promessa de, digamos, direitos humanos universais é claramente preferível a um governo que nem ao menos tem esta pretensão. Mas é insuficiente. Mesmo o sistema representativo mais gentil necessariamente carrega consigo uma perda de liberdade. Como o capitalismo, um imperativo do tipo crescer-ou-morrer está impregnado na própria estrutura do estado. Como Karl Marx explicou em seu O Capital, o objetivo do capitalismo é – de fato, precisa ser – “o movimento incessante de criar lucro”. Assim, também, existe este objetivo subjacente ao estado: o movimento incessante de criar poder. O impulso para o lucro e o impulso para o poder, respectivamente, precisam se tornar fins em si mesmos. Pois sem estes impulsos, não teríamos nem o capitalismo nem o estado; esses “objetivos” são parte de sua essência. Assim, os dois sistemas de exploração e dominação frequentemente interligados devem fazer o que for necessário para se sustentar, do contrário serão incapazes de manter seu “movimento incessante”.

     O que o estado precisa fazer, então, precisa ser feito em seu próprio interesse. Algumas vezes, é claro, os interesses do estado coincidem com os de vários grupos de pessoas eles podem até se sobrepor com conceitos como justiça e compaixão. Mas essas convergências não são de forma alguma centrais ou mesmo essenciais ao seu suave funcionamento. Elas são apenas degraus instrumentais à medida em que o estado se move para manter, solidificar e consolidar seu poder.

     Em função disso, gostem ou não, todos os estados são forçados a lutar pelo monopólio do poder. “A mesma competição”, escreveu Mikhail Bakunin em Estatismo e Anarquismo, “que no campo econômico aniquila e engole pequenos e mesmo médios empreendimentos… em benefício daqueles com vasto capital… também opera no caso dos Estados, levando à destruição e absorção de Estados de pequeno e médio porte em benefício de impérios”. Os estados devem, como Bakunin notou, “devorar para não serem devorados”. Esse processo de tomada de poder deve quase invariavelmente tender em direção à centralização, hegemonia e métodos crescentemente mais sofisticados de comando, coerção e controle. Em poucas palavras, na jornada em busca do monopólio do poder, sempre deverão  existir sujeitos a serem dominados.

     Como sistemas institucionalizados de dominação, então, nem o estado nem o capital são controláveis. Nem podem ser emendados ou tornados benignos. Assim, o grito de guerra de qualquer ativista progressivo ou de esquerda que aceita os termos do estado-nação e/ou do capitalismo é, em última instância, apenas esse: “Sem explocação sem representação! Sem dominação sem representação!”

     A democracia direta, por outro lado, está em completa oposição tanto com o estado quanto com o capitalismo. Como um “governo do povo”, a lógica subjacente da democracia é essencialmente o movimento incessante de criar liberdade. E liberdade, como vimos, é impossibilitada por padrão em qualquer sistema representativo.

     N.T. Talvez os novos modelos de democracia líquida, no qual se delega o poder de decidir somente quando é conveniente a cada um, sendo sempre possível diretamente decidir e, quando preferível por cada um, delegar seu poder de decisão a outrem, seja um exemplo de representação que ainda poderá mostrar seu valor a partir dos exemplos que começam a ser utilizados pelo mundo.

     A democracia direta, entretanto, é fortemente rechaçada pelas pequenas elites econômicas e políticas que estão no poder, pois se constitui em uma ameaça a quem quer que sejam eles, monarcas, aristocratas, ditadores, governantes eleitos ou presidentes (e mesmo acionistas!) de grandes corporações.

     Precisamos retomar aquele projeto ainda não terminado de “viver livremente em cidades livres”, em contraposição a aceitar “o estado”como a única forma de governo, como Piotr Kropotkin argumentou em um livro de mesmo nome – se quisermos ter esperança de contestar a dominação instituída.

     Como John Dewey colocou em seu “The Public and Its Problems”, “A política democrática americana desenvolveu-se a partir de uma vida comunitária genuína… O bairro ou uma área não muito maior era a unidade política, o encontro de bairro o meio político, e ruas, escolas e a paz na comunidade eram os objetivos políticos”. Assim era a América na época do século XVIII, constituída por capítulos que se organizavam a partir de encontros locais, nos quais os cidadãos podiam se encontrar regularmente para determinar as políticas públicas da comunidade e compartilhar suas necessidades.

     Participando dos debates, deliberações e decisões da sua própria comunidade tornou-se parte de uma vida plena e vibrante; não apenas deu aos colonizadores a experiência e as instituições que mais tarde iriam dar suporte à revolução mas também uma forma tangível de liberdade pela qual valia a pena lutar. Consequentemente, eles lutavam para preservar o controle sobre suas vidas diárias; primeiro com os ingleses pela independência e, mais tarde, entre eles mesmos sobre formas rivais de governança. A constituição final dos Estados Unidos da América, é claro, definiu uma república federativa e não uma democracia direta. Mas antes, durante e mesmo depois da revolução, vez ou outra, encontros de bairro, conselhos populares e assembleias confederativas exerceram seus poderes de auto-gestão ou criaram novos quando estes foram bloqueados – tanto em instituições legais quanto extra-legais – tornando ainda mais radical o processo.

     Uma das grandes limitações da esquerda libertária tem sido ignorar a política em si – quer dizer, a necessidade de um lugar garantido para a liberdade emergir.

     A banda The Clash cantou anos atrás sobre “rebeldes dançando no ar”, e parece que estivemos modelando nossas lutas políticas desse jeito. Podemos nos sentir fortes nas ruas ou construindo ocupações, em nossos infoshops e dentro de nossos encontros coletivos, mas essa é uma sensação momentânea e com frequência privada. Ela nos permite ser políticos, como em reação a, oposição, contraposição, ou mesmo tentando trabalhar fora das políticas públicas. Mas ela não nos deixa fazer política, como em fazer política pública ela mesma. É apenas uma “liberdade de”, daquelas coisas que não gostamos, ou mais acuradamente, liberação.

     “Liberação e liberdade não são a mesma coisa”, lembra Hannah Arendt em “Sobre a Revolução. Certamente, a liberação é uma necessidade básica: as pessoas necessitam estar livres de perigo, fome e ódio. Mas a liberação é muito menos do que a liberdade. Se em algum momento formos para alcançar todos nossas necessidades e desejos, se quisermos tomar controle de nossas vidas, cada um de nós precisa de liberdade de “liberdade para” se auto-desenvolver – individualmente, socialmente e politicamente. Como Arendt adicionou, “[A liberação] é incapaz de mesmo alcançar, quanto mais compreender, a ideia central da revolução, que é a fundação da liberdade”.

     A questão revolucionária se torna: Onde as decisões que afetam a sociedade como um todo são feitas? Pois é aí que o poder reside. É tempo de redescobrir o “tesouro perdido” que surge espontaneamente durante todas as revoluções – o conselho, e todas suas variedades imaginativas – como a base para constituir locais de poder para todos. Pois somente quando todos nós tivermos acesso igual e continuado aos espaços nos quais as políticas públicas são feitas – a esfera política – a liberdade terá uma chance de lutar para ganhar um espaço.

     Espremendo Montesquieu e seu “O Espírito das Leis”, podemos depreender que ele afirmava que o problema não é o poder em si, mas o poder sem limites, ou o poder como um fim em si mesmo. O poder precisa sempre estar ligado à liberdade; a liberdade precisa ser o limite colocado ao poder. Tom Paine, em seu “Os Direitos do Homem”, por sua vez disse: “O governo no antigo sistema é uma assunção de poder para o engrandecimento de si mesmo; no novo governo, a delegação de poder para o benefício comum da sociedade.”

     Se a liberdade é um objetivo social, o poder deve ser mantido horizontalmente. Nós todos devemos ser os criadores das regras e estar sob suas orientações ao mesmo tempo. Todos nós devemos manter o poder igualmente em nossas mãos se a liberdade deve coexistir com o poder. A liberdade, em outras palavras, só pode ser mantida através do compartilhamento do poder político, e esse compartilhamento acontece através das instituições políticas. Ao invés de construir um monopólio, o poder deve ser distribuído a todos nós, desta forma permitindo a todos nossos variados “poderes” (de razão, persuasão, tomada de decisão, e assim por diante) aflorar. Esse é o poder de criar ao invés de dominar.

     É claro, institucionalizar a democracia direta garante apenas o esqueleto de uma sociedade livre. A liberdade nunca é um negócio fechado, nem uma noção fixa. Novas formas de dominação surgem a cada momento, historicamente. Mas minimamente, as instituições democraticamente diretas abrem um espaço público no qual qualquer um, se assim escolher, pode chegar junto em um corpo deliberativo e de tomada de decisão; um espaço onde todos tem a oportunidade de persuadir e ser persuadido; um espaço no qual nenhuma discussão ou decisão é feita de forma escondida, e onde ela pode retornar para o escrutínio, responsabilização e reimaginação. Embrionariamente dentro da democracia direta, mesmo que funcione apenas como um mecanismo de construção de políticas verdadeiramente aberto, estão valores como igualdade, diversidade, cooperação e respeito aos valores humanos – esperançosamente, os blocos fundadores de uma ética liberatória à medida em que começamos a autogerir nossas comunidades, a economia e a sociedade em um círculo cada vez crescente de assembleias confederadas.

     Como uma prática, a democracia direta precisará ser aprendida. Como um princípio, ela terá que embasar todas as tomadas de decisão. Como uma instituição, ela terá que ser conquistada. Ela não irá aparecer magicamente da noite para o dia. Ao invés, ela irá emergir pouco a pouco a cada luta, como Murray Bookchin escreveu, “democratizar nossa república e radicalizar nossa democracia”.

     Temos que infundir todas nossas atividades políticas com política. Chegou a hora de uma nova Revolução, mas desta vez uma que quebre os laços do estado-nação, uma que não conheça fronteiras ou mestres, e uma que desenhe a potencialidade da autogovernança libertária ao seu extremo, plenamente emancipando a todos com o poder de agir democraticamente. Isso começa reinvindicando a palavra democracia em si – não como uma melhor versão de representação mas como um processo radical para diretamente reconstruir nosso mundo.

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Quintessencial

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