Abaixo ao trabalho
Apontamentos Anarquistas

Abaixo ao Trabalho

Os excertos a seguir estão sendo retirados do livro Abaixo ao Trabalho, textos compilados por Paulo Capra e publicados pela Editora Deriva. À medida em que faço a leitura, vou apontando alguns trechos relevantes, com eventuais comentários meus (os trechos entre aspas são do autor original, os em negrito são intervenções minhas). Este é um texto “em construção”, e uma certa experiência a ser implementada de forma muito aperfeiçoada na Coolmeia em breve.

Estou introduzindo no texto abaixo, ainda de forma rudimentar, o conceito de Símbolos Notáveis (SN), que são atalhos contextualizados transversamente com o texto, criando um hipertexto denso, complexo e dinâmico – que só poderá ser completamente expresso fora da estrutura rígida de um weblog, em uma novo espaço que ainda está em fase de idealização-construção.

Os cinco textos que compõe o livro são os seguintes:

O Direito à Preguiça – Paul Lafargue

O Elogio do Lazer – Bertrand Russell

A Decadência do Trabalho – Raoul Vaneigem

A Abolição do Trabalho – Bob Black

Manifesto Contra o Trabalho – Grupo Krisis

O Direito à Preguiça – Paul Lafargue (SN #μbio)

Introdução

“A burguesia, quando lutava contra a nobreza, apoiada pelo clero, arvorou o livre exame e o ateísmo; mas, triunfante, mudou de tom e de comportamento e hoje conta apoiar na religião a sua supremacia econômica e política. Nos séculos XV e XVI, tinha alegremente retomado a tradição pagã e glorificava a carne e as suas paixões, que eram reprovadas pelo cristianismo; atualmente (SN #CxHis – contexto histórico: o texto foi escrito na prisão de Saint-Pélagie, em 1883), acumulada de bens e prazeres, renega os ensinamentos dos seus pensadores, os Rabelais, os Diderot, e prega a abstinência aos assalariados. A mora capitalista, lamentável paródia da moral cristã, fulmina com o anátema o corpo trabalhador; toma como ideal reduzir o produtor ao mínimo mais restrito de necessidades, suprimir as suas alegrias e as suas paixões e condená-lo ao papel de máquina entregando trabalho sem tréguas nem piedade.”

Um Dogma Desastroso

Sejamos preguiçosos em tudo, exceto em amar e em beber, exceto em sermos preguiçosos.” Lessing

“Uma estranha loucura se apossou das classes operárias das nações onde reina a civilização capitalista. Esta loucura arrasta consigo misérias individuais e sociais que há dois séculos torturam a triste humanidade. Esta loucura é o amor ao trabalho, a paixão moribunda do trabalho, levado até ao esgotamento das forças vitais do indivíduo e da sua progenitora.”

“Na sociedade capitalista, o trabalho é a causa de toda a degenerescência intelectual, de toda a deformação orgânica. Comparem o puro-sangue das cavalariças de Rothschild, servido por uma criadagem de bímanos, com a pesada besta das quintas normandas que lavra a terra, carrega o estrume, que põe no celeiro a colheita dos cereais. Olhem para o nobre selvagem, que os missionários do comércio e os comerciantes da religião ainda não corromperam com o cristianismo, com a sífilis e o dogma do trabalho, e olhem em seguida para os nossos miseráveis criados das máquinas.”

“O provérbio espanhol diz: Descansar es salud (Descansar é saúde).”

“Os Gregos da grande época também só tinham desprezo pelo trabalho: só aos escravos era permitido trabalhar, o homem livre só conhecia os exercícios físicos e os jogos da inteligência. Também era a época em que se caminhava e se respirava num povo de Aristóteles, de Fídias, de Aristófanes; Os filósofos da antiguidade ensinavam o desprezo pelo trabalho, essa degradação do homem livre; os poetas cantavam a preguiça, esse presente dos deuses.”

“Cristo pregou a preguiça no seu sermão da montanha: “Contemplai o crescimento dos lírios dos campos, eles não trabalham nem fiam e, todavia, digo-vos, Salomão, em toda a sua glória, não se vestiu com maior brilho.” Jeová, o deus barbudo e rebarbativo, deu aos seus adoradores o exemplo supremo da preguiça ideal; depois de seis dias de trabalho, repousou para a eternidade.”

Bênçãos do Trabalho

“Os operários nunca deveriam considerar-se independentes dos seus superiores. É extremamente perigoso encorajar semelhantes manias num Estado comercial como o nosso onde talvez sete oitavos da população tenham pouca ou nenhuma propriedade.”

“Este trabalho, que em Junho de 1848 os operários reclamavam de armas na mão, impuseram-no eles as suas famílias; entregaram, aos barões da indústria, as suas mulheres e os seus filhos. Com as suas próprias mãos, demoliram o lar, com as suas próprias mãos, secaram o leite das suas mulheres; as infelizes, grávidas e amamentando os seus bebês, tiveram de ir para as minas e para as manufaturas esticar a espinha e esgotar os seus nervos; com as suas próprias mãos, quebraram a vida e vigor dos seus filhos. – Que vergonha para os proletários!”

“Muitos, diz Villermé, cinco mil em dezessete mil, eram obrigados, pela carestia das rendas, a instalar-se nas aldeias vizinhas. Alguns habitavam a duas léguas e um quarto da manufatura onde trabalhavam. Em Mullhouse, em Dornach, o trabalho começava às cinco horas da manhã e acabava às cinco horas da tarde tanto no verão como no inverno (…). Era preciso vê-los chegar…” (NÂO CONCLUIDO!!!!)

“A propósito da duração do trabalho, Villermé observa que os forçados das galés só trabalhavam dez horas, os escravos das Antilhas uma média de nove horas, enquanto que existia na França que tinha feito a Revolução de 89, que tinha proclamado os pomposos Direitos do Homem, manufaturas onde o dia de trabalho era de dezesseis horas, nas quais davam aos operários uma hora e meia para as refeições.”

“O miserável aborto dos princípios revolucionários da burguesia! O lúgubre presente do seu deus Progresso! Os filantropos proclamam benfeitores da humanidade aqueles que, para se enriquecerem da ociosidade, dão trabalho aos pobres; mais valia semear a peste ou envenenar as fontes do que erguer uma fábrica no meio de uma povoação rústica. Introduzam o trabalho de fábrica e adeus alegria, saúde, liberdade; adeus a tudo o que fez a vida bela e digna de ser vivida. SN #exemplo

E os economistas continuam a repetir aos operários: Trabalhem para aumentar a fortuna social! E, no entanto, um economista, Destutt de Tracy, responde-lhes: nas nações pobres que o povo está à sua vontade; é nas nações ricas que de um modo geral ele é pobre.”

“A imposição legal do trabalho exige demasiado esforço, demasiada violência e faz demasiado estardalhaço; a fome, pelo contrário, não só é uma pressão calma, silenciosa, incessante, como também o móbil mais natural do trabalho e da indústria, ela provoca também os mais poderosos esforços.”

“Se as crises industriais se seguem aos períodos de supertrabalho tão fatalmente como a noite se segue ao dia, arrastando atrás de si o desemprego forçado, e a miséria sem saída, também levam à bancarrota inexorável. Enquanto o fabricante tem crédito, solta a rédea à raiva do trabalho, faz empréstimos, volta a fazer empréstimos para fornecer matéria-prima aos operários. Tem de se produzir, sem refletir que o mercado se obstrui e que, se as mercadorias não chegarem a ser vendidas, as suas ordens de pagamento acabarão por se vencer. Encurralado, vai implorar ao Judeu, lança-se aos seus pés, oferece-lhe o seu sangue, a sua honra.”

“Convencer o proletariado de que a palavra que lhe inocularam é perversa, que o trabalho desenfreado a que se dedica desde o início do século é o mais terrível flagelo que já alguma vez atacou a humanidade, que o trabalho só se tornará um condimento de prazer da preguiça, um exercício benéfico para o organismo humano, uma paixão útil ao organismo social, quando for prudentemente regulamentado e limitado a um máximo de três horas por dia, é uma tarefa árdua superior às minhas forças; só fisiologistas, higienistas, economistas comunistas poderão empreendê-la.”

O que se segue à superprodução

“…os proletários resolveram infligir o trabalho aos capitalistas. Ingênuos, tomaram a sério as teorias dos economistas e dos moralistas sobre o trabalho e maltrataram os rins para infligir a sua prática aos capitalistas. O proletariado arvorou a divisa: Quem não trabalha, não come; Lyon, em 1831, levantou-se pelo chumbo ou pelo trabalho, os federados de 1871 declararam o seu levantamento a revolução do trabalho. A estes ímpetos de furor bárbaro, destrutivo de todo o prazer e de toda a preguiça burguesas, os capitalistas só podiam responder com uma repressão feroz, mas sabiam que, se tinham conseguido reprimir estas expressões revolucionárias, não tinham afogado no sangue dos seus gigantescos massacres a absurda ideia do proletariado de querer infligir o trabalho às classes ociosas e fartas, e foi para desviar essa infelicidade que se rodearam de pretorianos, de polícias, de magistrados, de carcereiros mantidos numa improdutividade laboriosa. Já não se podem ter ilusões sobre o caráter dos exércitos modernos, são mantidos em permanência apenas para reprimir o “inimigo interno”.”

“Para ser aliviada no seu penoso trabalho, a burguesia retirou da classe operária uma massa de homens muito superior à que continuava dedicada à produção útil e condenou-a, por seu turno, à improdutividade e ao superconsumo. Mas este rebanho de bocas inúteis, apesar da sua voracidade insaciável, não basta para consumir todas as mercadorias que os operários, embrutecidos pelo dogma do trabalho, produzem como maníacos, sem os quererem consumir.
Em presença desta dupla loucura dos trabalhadores, de se matarem de supertrabalho e de vegetarem de abstinência, o grande problema da produção capitalista já não é encontrar produtores e multiplicar as suas forças, mas descobrir consumidores, excitar os seus apetites e criar-lhes necessidades fictícias.”

“Mas tudo é insuficiente: o burguês que se farta, a classe doméstica que ultrapassa a classe produtiva, as nações estrangeiras e bárbaras que se enchem de mercadorias européias; nada, nada pode conseguir dar vazão às montanhas de produtos que se amontoam maiores e mais altas do que as pirâmides do Egito: a produtividade dos operários europeus desafia todo o consumo, todo o desperdício.”

1883: “Em Lyon, em vez de deixar à fibra sedosa a sua simplicidade e a sua flexibilidade natural, sobrecarregam-na de sais minerais que, ao acrescentarem-lhe peso, a tornam friável e de pouco uso. Todos os nossos produtos são adulterados para facilitar o seu escoamento e abreviar a sua existência. A nossa época será chamada a idade da falsificação, tal como as primeiras épocas receberam os nomes de idade da pedra, idade de bronze, pelo caráter da sua produção.”

“Um dos maiores manufatureiros da Alsácia, o Sr. Bourcart, de Guebwiller, declarava: “O dia de trabalho de doze horas era excessivo e devia ser reduzido para onze e aos sábados devia-se suspender o trabalho às duas horas. Posso aconselhar que a adoção dessa medida embora pareça onerosa à primeira vista; experimentamo-la nos nossos estabelecimentos industriais há já quatro anos e demo-nos bem e a produção média, longe de diminuir, aumentou.”
No seu estudo sobre as máquinas, o Sr. F. Passy cita a seguinte carta de um grande industrial bela, o Sr. M. Ottavaere: “As nossas máquinas, embora sejam as mesmas que as das fábricas de fiação inglesas, não produzem o que deveriam produzir e o que produziriam estas mesmas máquinas na Inglaterra embora as fábricas de fiação funcionem menos duas horas por dia. (…) Trabalhamos todos duas longas horas a mais, estou convencido de que, se trabalhássemos onze horas em vez de treze, teríamos a mesma produção e, por conseguinte, produziríamos mais economicamente.”
Por outro lado, o Sr. Leroy-Beaulieu afirma que “um grande manufatureiro belga observa muito bem que nas semanas em que calha um dia feriado a produção não é inferior às das semanas normais.”

“Mas se uma miserável redução de duas horas aumentou em dez anos a produção inglesa em cerca de um terço, que ritmo vertiginoso imprimiria à produção francesa uma redução geral de três horas no dia de trabalho? Os operários não conseguem compreender que, cansando-se excessivamente, esgotam as suas forças antes da idade de se tornarem incapazes para qualquer trabalho; que absorvidos, embrutecidos por um único vício, já não são homens, mas sim restos de homens; que matam neles todas as belas faculdades para só deixarem de pé, e luxuriante, a loucura furiosa do trabalho.”

Apêndice

“Arisóteles previa que “se cada utensílio pudesse executar sem intimação, ou então por si só, a sua função própria, tal como as obras-primas de Dédalo se moviam por si mesmas ou tal como os tripés de Vulcano que se punham espontaneamente ao seu trabalho sagrado; se, por exemplo, as lançadeiras dos tecelões tecessem por si próprias, o chefe de oficina já não teria necessidade de ajudantes, nem o senhor de escravos”.
O sonho de Aristóteles é a nossa realidade. As nossas máquinas a vapor, com membros de aço, infatigáveis, de maravilhosa e inesgotável fecundidade, realizam por si próprias docilmente o seu trabalho sagrado; e, no entanto, o gênio dos grandes filósofos do capitalismo continua a ser dominado pelo preconceito do salariado, a pior das escravaturas. Ainda não compreendem que a máquina é o redentor da humanidade, o Deus que resgatará o homem das sórdidas artes e do trabalho assalariado, o Deus que lhe dará tempos livres e liberdade.”

O Elogio do Lazer – Bertrand Russell (SN #μbio)

“Quando uma pessoa, que já possui o bastante para viver, resolve ocupar-se em uma atividade social, a de professor ou a de datilógrafo, por exemplo, diz-se que essa pessoa – seja homem ou mulher – está tirando o pão da boca dos outros, e, por conseguinte, procedendo mal. Se este argumento fosse conclusivo, bastaria simplesmente que todos nós fossemos indolentes e assim teríamos todos as bocas cheias de pão. Mas as pessoas que dizem tais coisas se esquecem de que, habitualmente, o homem gasta os proventos de seu trabalho, e, assim o fazendo, está empregando esse numerário.

Gastando, pois, sua renda, o homem põe na boca de outros, quando lhas tira, ao ganhá-la. Por este ponto de vista, o verdadeiro vilão é o homem parcimonioso. Se el, simplesmente, puser suas economias num pé-de-meia, como o proverbial camponês francês, é evidente que não está dando o devido emprego a seu dinheiro. Mas se investe suas economias, o assunto é menos evidente e diferentes casos podem apresentar-se.

Uma das maneiras mais comuns de empregar economias é emprestá-las ao governo. Em virtude desse fato, grande verba dos orçamentos da maioria das administrações públicas de países civilizados é empregada no pagamento do após-guerra ou na preparação de guerras futuras. O homem que empresta dinheiro ao governo encontra-se na mesma posição do homem mau de Shakespeare, que assalariava assassinos. O resultado líquido que tem o homem de hábitos econômicos é fazer aumentar as forças armadas do Estado ao qual ele empresta suas economias. Evidentemente, melhor seria se ele mesmo gastasse o seu dinheiro, ainda que o fizesse na bebida ou no jogo.”

“Desejo dizer, com toda seriedade, que grande mal está sendo causado ao mundo moderno, com a crença na virtuosidade do trabalho e com a de que o caminho para a felicidade e prosperidade consiste na sua diminuição organizada.”

“Antes de tudo, o que é o trabalho? Há trabalho de duas espécies: a primeira consiste em alterar a posição da matéria na terra, ou próxima à sua superfície, relativamente à outra matéria; a segunda, em dizer aos outros que façam assim. A primeira espécie é desagradável e mal paga; a segunda, agradável e bem remunerada. Esta última é capaz de ilimitada extensão – não há somente aqueles que dão ordens, mas os que dão conselhos sobre as coisas que deveriam ser ordenadas. Usualmente, as corporações organizadas dão duas espécies opostas de conselhos – é o que se chama política. A habilidade necessária para essa espécie de trabalho não é o conhecimento dos assuntos a respeito dos quais são dados os conselhos, mas a arte de falar e de escrever persuasivamente: isto é, a arte da propaganda.

Na Europa, há uma terceira classe de homens, mais respeitada que qualquer uma dessas de trabalhadores, o que não acontece na América. Há os homens que, pelo direito de propriedade, podem obrigar os outros a pagar pelo privilégio de poderem viver e trabalhar em suas terras. Esses proprietários são, em geral, indolentes, e, por isso, é de se esperar que sejam louvados. Infelizmente, sua ociosidade só pode tornar-se realidade pelo trabalho dos outros. Na verdade, seu desejo de ter uma confortável ociosidade é, historicamente, a fonte de todo o Evangelho do Trabalho. O que nunca desejaram é que outros pudessem seguir seu exemplo.”

“Do início da Civilização até a Revolução Industrial, por via de regra, um homem podia produzir, pelo trabalho árduo, pouco mais do que era necessário para sua subsistência e de sua família, ainda que a mulher trabalhasse, pelo menos, tão intensamente quanto ele, e os filhos o ajudassem com seu trabalho, logo que tivessem a idade suficiente para fazê-lo. O pequeno excedente sobre o estritamente necessário não era deixado para aqueles que o produziam, mas usurpado pelos guerreiros e pelos sacerdotes de então. Em época de escassez, não havia excedente. Contudo, os sacerdotes e guerreiros retinham tanto como nos tempos de abundância, resultando, por esse motivo, que os trabalhadores passavam fome. (…)

É evidente que, nas primitivas comunidades, os camponeses se deixados à vontade, não se teriam privado do escasso excedente que sustentava os sacerdotes e os guerreiros, mas teriam ou produzido menos ou consumido mais. A princípio, a força bruta compeliu-os a produzir e a se desfazer do excedente. Todavia, pouco a pouco, foi possível induzir muitos deles a aceitarem uma ética, segundo a qual era de seu dever trabalhar arduamente, se bem que uma parte de seu trabalho viesse a manter outros na ociosidade.”

“Até nossos dias 99% dos assalariados ingleses ficariam verdadeiramente chocados se fosse proposto que o rei não tivesse renda maior que a de um trabalhador qualquer. A concepção do dever, historicamente falando, tem sido um meio usado pelos detentores do poder para induzirem os outros a viverem mais para os interesses dos patrões que para os seus próprios. Naturalmente, os que estão com o poder ocultam esse fato, fazendo acreditar que os seus interesses são idênticos aos maiores interesses da humanidade.”

“A técnica moderna tornou o lazer possível, a fim de diminuir consideravelmente a quantidade de trabalho exigida para assegurar a subsistência de todos. Isso se tornou evidente durante a guerra. Naquela época, todos os homens das forças armadas, todos os homens e mulheres ocupados na produção de munições, nos serviços de espionagem, na propaganda de guerra ou nos departamentos oficiais relacionados com a guerra, foram retirados de outras ocupações produtivas. A despeito disso, o nível de bem-estar físico entre os assalariados inexperientes do lado dos Aliados era mais elevado do que antes. A significação desse fato acha-se oculta no princípio financeiro. Tomar emprestado é alimentar o presente com o futuro. Mas teria sido naturalmente impossível – um homem não pode comer um pão que ainda não existe. A guerra demonstrou, de modo explícito, que, pela organização científica da produção, é possível manter as populações modernas com regular conforto, numa pequena parte do âmbito de trabalho do mundo moderno. Se, no fim da guerra, a organização científica que foi criada para libertar o homem do trabalhado relacionado com a luta e as munições tivesse sido conservada e as horas de trabalho diminuídas para quatro, tudo estaria muito bem. Mas, em lugar disso, o velho caso foi reestabelecido e aqueles cujo trabalho era reclamado tiveram que trabalhar longas horas e o resto morrer de fome, por falta de emprego. Porque, porque o trabalho é um dever, e um homem não poderia receber salário na proporção do que produzia, mas na proporção de seu valor, demonstrado no trabalho.”

“Se o trabalhador comum trabalhasse quatro horas por dia, isto seria o suficiente para todos, e não haveria falta de emprego, admitindo-se um dose muito moderada de sensata organização. Essa ideia choca os endinheirados porque eles estão certos de que o pobre não saberia como empregar tanto “lazer”. Nos Estados Unidos, os homens, muitas vezes, trabalham longas horas mesmo quando já são endinheirados.”

“Deve-se admitir que o uso acertado do “lazer” é um produto da civilização e da educação. Um homem que trabalhou longas horas durante toda a vida, ficará enfadado se, de repente, ficar sem ter o que fazer. Mas, sem um razoável descanso, o homem sentir-se-á privado de muitas das melhores coisas. Nenhum motivo existe para que a maioria do povo deva sofrer dessa privação. Somente um ascetismo insensato nos faz continuar a insistir em que se deva trabalhar, excessivamente, agora que essa necessidade já não existe.”

“A atitude das classes dirigentes – especialmente a das que realizam a propaganda educacional – no que diz respeito à dignidade do trabalho, é quase exatamente a que as classes dirigentes do mundo tem sempre tido com para o que era chamado o “pobre honesto”. Diligência, sobriedade, boa vontade para trabalhar longas horas, a fim de obter vantagens remotas, até mesmo a submissão à autoridade, tudo isso reaparece.”

“Pouco nos importamos com a justiça econômica, de modo que uma grande porcentagem de lucro da produção total, se canaliza para uma parte mínima da população, dentro do qual há muitos que não executam trabalho de espécie alguma. Em vista da ausência de qualquer controle central para a produção, fabricamos um monte de coisas que não são necessárias. Podemos conservar uma grande porcentagem da população operária na ociosidade, porque nos é dado dispensar o seu trabalho, fazendo com que os outros trabalhem excessivamente. Quando todos esses métodos se tornarem inadequados, o resultado será a guerra. Induzimos um certo número de pessoas a fabricarem altos explosivos e outros a fazê-los explodirem, como se fossem crianças que tivessem acabado de descobrir fogos de artifício. Por uma combinação de todos esses inventos, fazemos o possível, ainda que com dificuldade, para conservar viva a noção de que uma grande parte de árduo trabalho manual deve ser o quinhão do homem médio.”

“A solução nacional, logo que for possível atender as necessidades e o conforto de todos, seria reduzir, gradualmente, as horas de trabalho, permitindo que o voto popular decidisse qual das duas coisas seria prefirível – mais “lazer” ou mais “mercadorias”. Mas, tendo sido ensinado a suprema virtude do trabalho penoso, é difícil ver como as autoridades possam almejar um paraíso no qual haja mais lazer e menos trabalho. Parece mais provável que eles possam encontrar novos planos, segundo os quais a ociosidade presente deva ser sacrificada em benefício da futura produtividade.”

“Se perguntarmos ao trabalhador o que pensa a respeito da melhor parte de sua vida, provavelmente não responderá: “gosto do trabalho manual porque estou cumprindo a mais nobre tarefa do homem e gosto de pensar como o homem é capaz de transformar este planeta. É verdade que meu corpo exige períodos de repouso e que tenha de fazê-lo da melhor maneira possível, mas nunca me sinto tão feliz, como quando o dia amanhece, e posso voltar ao trabalho do qual brota todo o meu contentamento”. Jamais ouvi um operário expressar-se desse modo. Eles consideram o trabalho como deveria ser considerado, isto é, como um meio de subsistência e é das suas horas de lazer que eles tiram a felicidade – seja ela qual for – que possam gozar.”

“O homem moderno julga que tudo deve ser feito por causa de alguém mais e nunca tão somente em seu próprio interesse.”

“O indivíduo em nossa sociedade trabalha para ter lucro. Mas o fim social de seu trabalho está no consumo do que ele produz. É este divórcio entre o indivíduo e o objetivo social da produção que torna difícil, para os homens, pensarem com clareza num mundo onde o lucro é o incentivo da indústria. Pensamos muitíssimo na produção e pouquíssimo no consumo. Um dos resultados é que emprestamos pouca importância ao gozo e à felicidade e não julgamos a produção pelo prazer que ela proporciona ao consumidor.

Quando sugiro que as horas de trabalho devam ser reduzidas a quatro não estou fazendo supor que o resto do tempo seja gasto em meras futilidades. O que eu quero dizer é que quatro horas de trabalho habilitam um homem para as necessidades e o conforto elementares da vida e que o resto do tempo poderia ser empregado, como lhe aprouvesse, em coisa úteis. É parte indispensável de qualquer sistema social que a educação deveria ser levada muito além do que ela o é, presentemente, e, em parte, teria por objetivo tornar o homem capaz de usar o “lazer” inteligentemente. E quero, sobretudo, acentuar que não estou pensando em coisas que poderiam ser consideradas “altamente intelectuais”. As danças campesinas se extinguiram, exceto nas zonas rurais longínquas, mas os estímulos que causaram o seu cultivo ainda devem existir na natureza humana. Os prazeres das populações urbanas têm se tornado, sobretudo, passivos, como ir ao cinema, assistir a uma partida de futebol, ouvir uma sessão de rádio, e assim por diante. Isso resulta do fato de suas energias terem sido absorvidas inteiramente pelo trabalho. Se elas tivessem uma vida de mais “lazer”, poderiam usufruir prazeres nos quais tomassem parte mais ativa.”

“Este sistema de existir uma classe sem ocupação, hereditária, isenta de deveres, foi, todavia, extremamente nocivo. Nenhum dos membros da classe foi instruído no sentido de ser trabalhador e a classe, como um todo, não era excepcionalmente inteligente. A classe pôde produzir um Darwin, mas, em face dele, se encontravam milhares de cavalheiros que nunca pensaram em coisa mais inteligente do que caçar raposas e castigar caçadores furtivos. No momento, as universidades estão em condições de fornecer, de um modo sistemático, o que a classe sem ocupação forneceu acidentalmente, como um subproduto. Isso constitui um grande melhoramento, mas apresenta certas desvantagens. A vida universitária é tão diferente do mundo em liberdade que o homem que vive num milieu acadêmico tende a desconhecer as preocupações e problemas do homem e da mulher; além disso, a maneira de se exprimirem causa uma influência contrária a que deveriam causar sobre o público em geral.”

“Num mundo onde ninguém é obrigado a trabalhar mais do que quatro horas por dia, todo indivíduo, possuído de curiosidade científica, será capaz de entregar-se a ela, e todo pintor poderá preparar os melhores quadros sem morrer de fome. Os jovens escritores não serão obrigados a escreverem coisas sensacionais para atrair a atenção, tendo em vista adquirir a independência econômica necessária, para escrever obras monumentais para o que aliás, chegado o momento, já terão perdido o gosto e a capacidade. Os homens que, em seu trabalho profissional, se tornaram interessados por determinado aspecto da economia política ou do governo, serão capazes de desenvolver suas ideias, sem a separação acadêmica, a qual torna carente de realidade o trabalho dos economistas universitários. O médico terá tempo para se por em dia com os progressos da medicina, o professor não terá de lutar exasperadamente para ensinar, por métodos rotineiros, coisas que aprenderam na mocidade, e que, com o correr dos tempos, ficou provado não serem verdadeiras.

Sobretudo, haverá felicidade e alegria de viver, em vez de nervos em frangalhos, desgaste e dispepsia. O trabalho deve ser dosado para tornar o “lazer” delicioso e nunca para produzir o esgotamento. Uma vez que os homens não se cansam em suas horas de “lazer”, a eles pouco importa que os divertimentos sejam passivos ou insípidos. Pelo menos, um por cento, provavelmente, dedicará o tempo que não foi gasto em pesquisas de alguma importância pública e, uma vez que não dependem dessas mesmas pesquisas para sua manutenção, sua originalidade terá livre curso e não haverá mais necessidade de conformar-se com padrões estabelecidos pelos pundites de idade madura.

Mas, não é somente nesses casos excepcionais que as vantagens do “lazer” aparecerão. Ordinariamente, os homens e as mulheres comuns que têm a oportunidade de uma vida feliz se tornarão mais bondosos, menos opressores e menos inclinados a ver os outros com suspeita. O gosto pela guerra desaparecerá, em parte, por essa razão e, em parte, porque implica um grande e severo trabalho para todos. A boa índole é a única entre todas as qualidades morais a de que mais precisa o mundo, e a boa índole é o resultado do sossego e da segurança para todos; mas, em vez disso, o que escolhemos foi o trabalho demais para uns e a fome para outros. Até agora, continuamos a ser tão ativos quanto o éramos antes da existência das máquinas. Por este ponto de vista, temos sido insensatos, mas não há razão para continuarmos a sê-lo indefinidamente.”

A Decadência do Trabalho – Raoul Vaneigem (SN #μbio)

“A obrigação de produzir aliena a paixão de criar”

“Em uma sociedade industrial que confunde trabalho e produtividade, a necessidade de produzir sempre foi antagonista do desejo de criar. O que resta de centelha humana, de criatividade possível, em um ser privado de sono às seis horas a cada manhã, que se equilibra nos trens suburbanos, ensurdecido pelo ruído das máquinas, ralado, cozido a vapor pelas cadências, os gestos privados de sentido, o controle estatístico, e jogado ao fim do dia nos saguões das estações, catedrais de partida para o inferno das semanas e o ínfimo paraíso dos finais de semana, onde a multidão comunga a fadiga e o embrutecimento? Da adolescência à aposentadoria, nos ciclos de vinte e quatro horas ouve-se o uniforme estilhaçar de vidraças: rachadura da repetição mecânica, rachadura do tempo-é-dinheiro, rachadura da submissão aos chefes, rachadura do tédio, rachadura da fadiga. Da força viva esmigalhada brutalmente ao rasgo escancarado da velhice, a vida se racha por todos os lados sob golpes do trabalho forçado. Jamais uma civilização atingiu tal grau de desprezo pela vida; afogada no desgosto, jamais uma geração experimentou tal raiva de viver. Aqueles que matamos lentamente nos matadouros mecanizados do trabalho são os mesmos que discutem, cantam, bebem, dançam, beijam, ocupam as ruas, pegam em armas, criam uma nova poesia. Já está se formando uma frente contra o trabalho forçado; os gestos de recusa já modelam a consciência futura. Todo apelo à produtividade é, sob as condições desejadas pelo capitalismo e pela economia sovietizada, um apelo à escravidão.”

“O tripalium era um instrumento de tortura. Labor significa “tormento”. Há uma certa leviandade no esquecimento da origem das palavras “trabalho” e “labor”.”

“A burguesia não domina, ela explora. Ela submete pouco, ela prefere usar. Como não se viu que o princípio do trabalho produtivo substituiu simplesmente ao princípio da autoridade feudal? Por que não se quis compreender isso?

Seria porque o trabalho melhora a condição dos homens e salva os pobres, pelo menos ilusoriamente, da danação eterna? Sem dúvida, mas hoje se torna evidente que a chantagem de dias melhores sucede docilmente a chantagem de salvação no além. Em um ou outro caso, o presente está sempre sob o punho da opressão.”

“Trabalhar para transformar o mundo? Vejam só! O mundo se transforma pelo molde do trabalho forçado; e é por isso que ele se transforma para pior.” (COMO INVERTER ISSO? PERMITIR VIVER, CRIAR)

“O taylorismo deu o golpe de misericórdia em uma mentalidade preciosamente entretida pelo capitalismo arcaico. É inútil esperar de um trabalho feito na cadeia de produção mais do que uma caricatura de criatividade. O amor ao trabalho bem feito e o gosto pela promoção no trabalho são hoje a marca indelével da fraqueza e da submissão mais estúpidas. É por isso que, onde quer que a submissão seja exigida, o velho peido ideológico toma seu rumo, do Arbeit macht frei (o trabalho liberta) dos campos de concentração aos discursos de Henry Ford e de Mao Tsé-Tung.”

“Estatísticas publicadas em 1938 indicam que a aplicação de técnicas de produção contemporâneas reduziriam a duração do tempo de trabalho necessário para três horas por dia. Não somente estamos longe disto com nossas sete horas de trabalho, mas após usar gerações de trabalhadores prometendo-lhes o bem-estar que ela lhe vende a prazo, a burguesia (e sua versão sovietizada) prossegue a sua destruição do homem fora do trabalho. Amanhã ela exibirá como isca suas cinco horas de desgaste cotidiano exigidas por um tempo de criatividade que crescerá na proporção em que puder ser preenchido de uma impossibilidade de criar (a famosa organização do lazer).”

“Alguém se deu ao cuidado de estudar as modalidades de trabalho dos povos primitivos, a importância do jogo e da criatividade, o incrível rendimento obtido por métodos que uma gota das técnicas modernas tornaria cem vezes mais eficazes ainda? Parece que não. Todo apelo à criatividade vem de cima. Ora, só a criatividade é espontaneamente rica. Não é da produtividade que devemos esperar uma resposta coletiva e entusiasta à demanda econômica.”

“Veremos qualquer dia grevistas, reivindicando a automação e a semana de dez horas, escolherem, como forma de greve, fazer amor nas fábricas, nos escritórios e nos centros culturais? Somente se inquietariam e se espantariam os planejadores, os gerentes, os dirigentes sindicais e os sociólogos. Com razão, talvez. Afinal, é a pele deles que está em jogo.”

SN #μbio Paul Lafargue (1842-1911) foi escritor e ativista político; genro de Karl Marx, casado com sua segunda filha Laura. O Direito à Preguiça foi escrito na prisão em 1883 e publicado originalmente no jornal socialista L´Égalité. Nascido em Santiago de Cuba de Família Franco-Caribenha, Lafargue passou a maior parte de sua vida na França. Aos 69 anos de idade ele e Laura morreram juntos em um pacto de suicídio.

SN #μbio Bertrand Russell (1872 – 1970). Foi um dos mais influentes matemáticos, filósofos e lógicos que viveram no século XX. Um importante político liberal, ativista e um popularizador da Filosofia.

SN #μbio Raoul Veneigem (1934), escritor e filósofo belga que participou da Internacional Situacionista entre 1961 e 1970.

SN #exemplo Os índios das tribos guerreiras do Brasil matam os seus doentes e os seus velhos; testemunham a sua amizade acabando com uma vida que já não é animada por combates, por festas, por danças. Todos os povos primitivos deram aos seus estas provas de afeição: os Messagetas do mar Cáspio (Heródoto), bem como os Wens da Alemanha e os Celtas da Gália. Nas igrejas da Suécia, ainda há pouco se conservavam as chamadas davas familiares que serviam para libertar os parentes das tristezas da velhice.

(continua em construção)

4 Comentários

  • giuliano remy

    É. Muita merda que esse povinho desgraçado e metido a crentes vivem e se fodem achando q Deus se preocupa. Deus tá se fudendo pra pessoas imbecis e canalhas q fingem ser um bando de pau mandado e se passarem por idiotas pregando o que não entendem… Toda a vida. Testemunha de Jeová. São os mais cretinos e filhos da puta! Camada de gente q se faz de burra. Vão todos se fuderem e que atolem esse Jeová. No cú. Junto com Jesus. Gente escrota e alienada. Seita do inferno q destrói a mente de quem dá O cú. Se receberem ordens de quem abusa da historinha de Jesus .

  • rita monte

    o que eu precisava…
    belo recorte de crítica sobre o trabalho, rafael, já li o do grupo krisis, e é de fato excelente. esse compilado pode ajudar bastante no referencial teórico do Novo Olhar… bom ver isso por aqui!

    • Rafael Reinehr

      Programas, evolução e inteligência coletiva
      Obrigado, Rita. Pretendo, até segunda-feira, ter compilado e transcrito todo o livro aqui nesta página.

      O software que estamos desenvolvendo para a Coolmeia permitirá uma interação magnífica em cima de textos e ideias, podendo ajudar em muito grupos como o Novo Olhar e quem mais desejar reunir-se sobre um mesmo tema, aprofundá-lo e criar um standard, um padrão de recomendação ou algo do gênero (como na questão do IRBEM, por exemplo).

      Se conhecer algum bom programador, por gentileza, me faça saber. Estamos precisando de toda ajuda possível no momento.

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