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Contos,  Literatura

Independência ou Morte – parte II

Brazil, 7 de setembro de 2072

Marcelo chega em casa de mais uma rotina massacrante nos Campos de Concentração Alimentar. Seu portão da garagem há alguns dias estava demorando para abrir. O trânsito na rua estava restrito para automóveis que ainda se moviam com motores a combustão, como o seu. Desde que o governo criou o ProLixo, em 2065, favorecendo veículos impulsionados a lixo tratado quimicamente nos Grandes Depósitos Penitenciários, Marcelo sabia que não iria poder manter seu belo Chevro-Fiat-Volks 2050.

A legislação, naqueles dias, estava bem mais dura. Era preciso andar na linha.

Enquanto esperava a total abertura do portão, Marcelo colocou parte da sua roda dianteira direita sobre a calçada. Assim o fez afim de não atrapalhar o fluxo do trânsito.

De súbito, um alarme tonitroante que buzinava Triiii-óh-triiiii-óh-triiiii-óh começou a soar. Junto a ele uma placa holográfica e luzes vermelho-brancas piscantes anunciavam:

[Chegada do Magnânimo Fiscal de Muitas das Cousas]

Sabendo da importância do referido fiscal Marcelo mui respeitosamente concedeu-lhe uma reverência. Em seguida perguntou, mais do que educadamente:

– Vossa Eminência Exuberante, como posso ser-lhe útil e tornar mais agradável seu dia de hoje?

– Saia já do carro e coloque as mãos na parede! – vociferou o oficial.

– M… mas… mas o que foi que eu fiz?

– Vossa senhoria não está a par da nova legislação aprovada na madrugada de ontem para hoje? Chancelada pela nossa Nobre Congregação de Ilustres Deliberadores dos Assuntos Públicos?

– N… Não! Poderia me esclarecer?

– A partir de hoje, às 8:00 da manhã, é terminantemente proibido estacionar sobre a calçada. Sobre qualquer calçada.

– Mas eu não estou estacionado sobre a calçada! Estou aguardando o portão abrir, para colocar o carro na garagem!

– Vossa senhoria estava claramente estacionado. É nítido e claro que seu veículo encontrava-se parado, e não em movimento!

– Mas isso é absurdo! Eu apenas comecei a subir na calçada para que a traseira do meu carro não atrapalhasse o trânsito. Veja quantos outros automóveis estão na via pública a este horário!

– Vossa senhoria está querendo dizer que eu estou equivocado em minha avaliação? Vossa senhoria sabe a penalidade por acusar de forma caluniosa um Magnânimo Fiscal?  Um Oficial Representante do Governus Theosoficus Maximus da Nação Brazileira?

– Hummm… não… não… não quis dizer isso! Vamos resolver este mal entendido!

– Não há nenhum mal entendido. Você foi flagrado em pleno crime de Superposição Calçadística com Veículo de Transporte a Motor. E a pena, conforme a legislação recém-promulgada é a retenção do veículo e a condução coercitiva do meliante e confinamento temporário.

– Maaaaas… Como assim? Eu trabalho o dia inteiro naqueles malditos Campos de Concentração Alimentar! Retiro minerais e elementos químicos úteis de alimentos podres, animais mortos e toda sorte de material em decomposição. Transformo lixo e todo tipo de resíduos das Grandes Indústrias do Norte em rações e cápsulas comestíveis. Detritos gerados a partir do lixo dos produtos criados para o deleite dos Bem-Aventurados Meritocratas das Famílias Escolhidas.

Subprodutos que são utilizados para alimentar as multidões famintas da Periferia Maravilhosa Para Pessoas Especiais e Igualmente Maravilhosas.

Que nome inadequado e mal descritivo para aqueles cortiços imundos – pensou Marcelo. Trabalho da propaganda duplipensante do Governus. Bolsões infectos para os quais são enviadas as pessoas desempregadas, enfermas e desajustadas. Alimentadas com as sobras do lixo do lixo. Com aquelas cápsulas e rações horríveis que são obrigados a consumir para tentar viver 30 a 40 anos de uma vida insípida, malcheirosa e cinza…

– Shiiit… Ta ta ta ta… Sem chororô. Saia logo do automóvel e se posicione conforme ordenado, ou as coisas ficarão realmente feias por aqui. Estou vendo que sua filha Penélope está estudando em uma Escola do Grande Estado do Sulito. Estou enviando uma ordem temporária de suspensão de 30 dias válida a contar de agora. Você sabe o que significa não concluir seus estudos, em nossa Máxima Nação, não sabe? Já viu acontecer com seu filho Augusto, tenho aqui nos meus registros.

Marcelo ficou mudo. Levantou-se do carro, refém daquela situação estapafúrdia. Estapafúrdia, talvez, para quem a estivesse visualizando a partir de 2016 ou 2017, anos em que o Grande Golpe ainda não havia sido percebido por boa parte da população brazileira. Naqueles anos, uma poderosa aliança entre facções com interesses distintos mas que caminhavam juntos com um mesmo objetivo estava apenas começando a consolidar sua ponte para o futuro. O sonho de criar uma Aristocracia poderosa e permanente estava rebrotando. O então chamado Congresso Nacional era dominado por grupos chamados Bancadas. Estas se dividiam, principalmente, entre a Bancada Ruralista – defensora dos interesses dos grandes proprietários de terra, pecuaristas e produtores de monoculturas;  a Bancada Evangélica – defensora dos interesses da população cristã evangélica, bem a verdade dos pastores e comandantes de rebanhos pentecostais e neopentecostais; a Bancada das Empreiteiras e Construtoras – cujo nome é auto-explicativo;  a Bancada Empresarial – representante dos grandes empresários industriais e comerciais do país;  a Bancada dos Parentes – composta de políticos com familiares na política;  e a menor mas barulhenta Bancada da Bala – composta por políticos que lutam pelos direitos de autodefesa individual através do armamento pessoal.

Estes grupos começaram a gerar alianças e apoiarem mutuamente seus projetos. Gradualmente, passaram leis cada vez mais excludentes e intolerantes para com certos grupos. Negros, lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transgêneros e transsexuais, classes economicamente desfavorecidas…  Quaisquer minorias e pessoas que buscassem mitigar a intolerância religiosa com discursos humanistas e igualitários eram alvos destas bancadas.

O governo da então chamada República Federativa do Brasil passou por intensos e sucessivos golpes à então existente pseudodemocracia. À época já elegia indivíduos e corporações economicamente favorecidas. Avançou cada vez mais com a supressão de direitos individuais com concomitante aumento dos deveres e surgimento de legislações progressivamente mais opressoras. Estas foram avançando nos centros urbanos e áreas rurais, retirando posses da classe trabalhadora e inflando um gigantesco sistema presidiário privado. A este foi dado o nome de Sistema Prisional Ultranacional. Contava com Grandes Depósitos Penitenciários que acolhiam as pessoas que eram extraídas de suas moradias e locais de trabalho após mínimas infrações.

A ideia do governo por volta de 2035 era simples: com a criação de penas severas para delitos simples, poderiam justificar a retirada de direitos outrora básicos das pessoas. Tais direitos incluíam acesso à saúde pública, à previdência social e à educação gratuita. Esta última suprimida desde o Plano de Incorporação Trabalhista Compulsório de 2029. Ele incluía todas as crianças a partir de 8 anos em um sistema de trabalho e aprendizado técnico de um ofício conforme a Tabela de Necessidades Industriais e Comerciais. Criado pelo Ministério da Educação e Trabalho (comandado pelos maiores acionistas empresariais da época), o Plano foi brindado como uma revolução educacional e trabalhista.

Com a retirada dos direitos, instituiu-se prisão por períodos determinados – 30 dias inicialmente, com penas subsequentemente maiores para novos delitos – como por exemplo tomar café em local público com mais de 2 amigos por mais de 30 minutos, leitura do livro O Capital, de Karl Marx, ou publicação de qualquer crítica ao Governus Theosoficus Maximus nas mídias sociais. Estas eram escrutinadas por algoritmos e robôs que denunciavam, penalizavam e notificavam automaticamente os Magnânimos Fiscais de Muitas das Cousas.

Os Grandes Depósitos Penitenciários logo se transformaram em uma grande solução na qual seres humanos eram depositados para trabalhar quase de graça (em troca de míseras rações alimentares produzidas a partir de sobras e produtos em degradação que eram limpos quimicamente e concentrados nas Máquinas de Reconversão Nutricional, nos Campos de Concentração Alimentar).

Marcelo é então levado, pela terceira vez nos últimos 15 meses, para o Grande Depósito Penitenciário da Baixada Melancólica. Da primeira vez, cumpriu 30 dias. Na segunda 60 dias e, agora, 90 dias estavam reservados para si. As penalizações eram linearmente progressivas para crimes leves e exponencialmente progressivas para crimes considerados moderados e graves.

Na primeira infração, foi penalizado por fumar um charuto originado na nuclearmente extinta ilha de Cuba em um local público. Na segunda, por fazer o download de uma música da banda Rage Against the Machine, banida 2 dias antes pela Nobre Congregação de Ilustres Deliberadores dos Assuntos Públicos. Esta era resultado horripilante de 55 anos de hibridizações políticas da mais abominável estirpe brazileira.

Como de costume, era permitido ao recém-chegado ao Depósito Penitenciário realizar uma ligação telepática monitorada ou enviar até 11 mensagens  de 140 caracteres via AIA. Os Algoritmos de Inteligência Artificial que substituiram os aplicativos de cinco décadas antes eram a forma mais usual de comunicação rápida então.

Marcelo estava em dúvida se avisava Ana Terra, sua companheira e mãe de Penélope ou se avisava sua filha. Ana estava foragida há 3 semanas por ter digitado as palavras “por uma vida mais livre e feliz” na ferramenta de busca “MNOQ”. MNOQ, ou Mil Novecentos e Oitenta e Quatro, era o único motor de busca permitido pelo Governus há alguns anos.

Decidiu avisar a filha, para não expor sua companheira.

Preferiu usar um dos AIAs disponíveis então, chamado SiriNow. Mandou as seguintes mensagens, todas elas monitoradas desde o Grande Ato Pacificador das Comunicações de 2032:

“Penélope querida, fui novamente convidado a passar alguns dias no Depósito da Baixada. Envio 3 mensagens Práticas, 3 Públicas e 4 Póstumas”

“Temos rações e algumas cápsulas não tão horríveis que consegui armazenar na parte de cima da despensa. Devem te alimentar por bom tempo”

“Não tenho notícia da sua mãe há alguns dias, encontre-a, diga-lhe que a amo e amarei sempre. Ela saberá o que fazer com o que te direi”

“Existem alguns mecanismos de defesa, anonimato e desaparecimento naquele local que falamos nos contos e canções. É hora de usá-los”

“Cidadãos do Brasil – lembremos do tempo em que ainda éramos livres. Hoje iniciamos uma nova jornada de resistência. Preparem suas AIAs”

“Uma série de instruções que levarão à destruição da Grande Máquina Que a Todos Governa será enviada a todos. O Hemisfério Norte desintegrará”

“Os próximos dias serão cruciais. O Plano de Recuperação da Vida Humana está em andamento. Autobots farão seu trabalho. Mirem e deliciem-se”

“Por muito tempo fomos governados por mecanismos de dominação central controlados por poucas pessoas no mundo. Chegou a hora da mudança”

“A partir de hoje, cada humano tomará nas mãos as rédeas de suas próprias vidas. Toda tecnologia de controle e registro de riquezas sumiram”

“A utopia está lá no horizonte, e serve para uma coisa: para que continuemos a caminhar. Ubuntu. Namastê. Amor, Apoio Mútuo e Despertar

“Façamos funcionar o mundo para a humanidade através da cooperação espontânea sem ofensa ecológica ou desvantagens para qualquer um. R.B.F.”

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Conto fantástico e distópico constante no livro Descontos – Editora Rio das Letras (Santa Maria – RS – 2017)

Rafael Reinehr é médico endocrinologista, anarquista, escritor, permacultor, ativista oikos-socio-ambiental e polímata ma non troppo.

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