O Anarquismo e suas Aspirações – parte IV
A Vida como um Todo
Implementar o Anarquismo como um projeto vivo se torna indissociável do Todo da Vida. Significa uma jornada em contínuo evoluir, com melhores (e piores) aproximações da liberdade aparecendo em vários tempos e lugares, apenas para aparentemente quase desaparecer um significativamente diminuir novamente. Contudo, a cada aproximação, a própria ideia de liberdade se expande com a noção do que é ser humano. Reminiscências da liberdade permanecem, em fatos ou na memória. Vestígios dos experimentos persistem. As pessoas se transformam e passam seus senso de potencialidade para outros.
É um momento de euforia quando, pela primeira vez, nos damos conta e arrancamos do nosso senso comum a percepção de que o racismo ou os estados são normais e necessários. A movimentação em direção a estados da mente, relações e instituições incrementalmente não-hierárquicos, abre um mundo inteiro de possibilidades – pelo menos como um começo, dentro de uma pessoa. O primeiro ato pode ser um pensamento crítico, um relacionamento menos estranho consigo mesmo e com os outros, ou a reapropriação da imaginação como um passo adiante em direção a uma sociedade não alienada.
Outra sensibilidade compartilhada entre anarquistas é sua tentativa de “escrutinizar” e alterar a totalidade da vida. O Anarquismo não se concentra somente nas esferas políticas, culturais, psicológicas ou outras. Nem separa uma questão singular de suas relações com outras questões, mesmo que cada um pessoalmente coloque ênfase em uma área em particular. Ele se preocupa com tudo que faz as pessoas humanas, incluindo o mundo não humano. O trabalho do Anarquismo acontece em todos os lugares, todos os dias, de dentro do corpo político até o corpo em si mesmo.
A esperança anarquista em transformar a vida se traduz em uma abordagem compartilhada, holística para viver a vida. Abraçar o Anarquismo é um processo de reavaliar cada asserção, cada certeza, tudo o que alguém pensa ou atua sobre e, com certeza, quem cada um é e então, basicamente, virar a vida desta pessoa de cabeça para baixo.
Acabar com relações coercitivas é uma jornada de refazer a si mesmo, como parte de um projeto de refazer o mundo. Mas se tornar um anarquista é também um processo – sem fim – de aplicar um compasso ético ao todo o que cada um (e todo mundo) é e pode ser individual e socialmente.
Os anarquistas não são necessariamente melhores ou piores do que qualquer outra pessoa. Eles são tão danificados pela teia intricada de hierarquias, ódio, e relações comodificadas que malformam a todos. Dentro dos círculos anarquistas, entretanto, várias tentativas pelo menos são feitas para se tornar aberto e auto-reflexivo acerca deste dano e, a partir daí, desenvolver formas humanas de abordá-lo e remediá-lo. O Anarquismo busca trabalhar pesado para reformar a cada um bem como a sociedade.
Os Anarquistas questionam a totalidade da vida, constantemente perguntando: “Qual é a coisa certa a fazer?”. Eles lutam para aplicar as respostas a tudo, desde necessidades básicas até desejos complexos, de instâncias de opressão até a desigualdades institucionais. Eles não vivem vidas puras e éticas. Ao invés, a distância entre o que os anarquistas imaginam ser totalmente ético e a série de más escolhas que todos fazemos sob as atuais condições ilustra que as relações sociais hierárquicas irão para sempre bloquear nossa possibilidade de ser livres.
A ênfase anarquista na totalidade da vida lembra que a ordem social vigente já enquadra o mundo para todos dentro de pequeníssimas interações: “escolha”, por si só, já é algo determinado dentro de certos parâmetros permissíveis. Os anarquistas criticam esta estrutura e constróem uma outra, ética, em seu lugar, ao contrário de promover uma avaliação moralista sobre se cada indivíduo é 100% ético agora – ou mesmo se está perto ou não. Os anarquistas não vivem vidas consistentemente éticas, mas seu esforço para fazê-lo é uma forma de desvelar as possibilidade de se mover para longe desse presente não ético.
Ao mesmo tempo, ser um anarquista não é sacrificar a si mesmo em nome da “revolução”. Tentando transformar a totalidade da vida aproximando-se de uma série de valores, os anarquistas tanto revelam as contradições sociais e testam novas relações sociais. Eles também começam a experimentar como a vida por si própria poderia ser qualitativamente diferente nas mais variadas formas: para cada um e entre outros que estão fazendo o mesmo. Dessa maneira, os anarquistas compartilham um senso de vida mais autodeterminado, vidas articuladas nos fronts pessoais e sociais, e ajudam a gradativamente aproximar “o que é” do “que poderia ser”. E isso não é tarefa pequena. A universalmente sentida alienação de uma totalidade da vida neste momento histórico em particular – existir em meio a uma forma de capitalismo globalizado – pode fazer parecer que atotalidade da vida está “fechada para a transformação”.
O Capitalismo apresenta possibilidades brilhantes para o futuro (nós podemos alimentar o mundo! sua própria compra vai fazê-lo feliz por muito tempo! esta rede social vai reduzir sua solidão!), mas nunca as preenche, então as pessoas precisam seguir atrás da próxima brilhante possibilidades. O último iPhone que atende a todas suas necessidades é, agora, uma casca inadequada, substituída pela próxima resposta a todos seus desejos. Se alguém tem “tudo” ou “nada”, a “vida” no capitalismo é um vazio.
Os experimentos anarquistas expõe as rachaduras neste edifício. Elas permitem às pessoas a experimentar pessoalmente o que poderia ser a vida se ela fosse feita por elas mesmas. Essa retomada qualitativa do dia a dia revela os cálculos quantitativos atordoantes que as pessoas são compelidas a fazer no capitalismo. Expandir o qualitativo pode ser uma chave para a superação do capitalismo, já que não adianta quanto o capitalismo tenta recuperar tudo o que faz as pessoas humanas, sua aparência quantitativa sempre parecerá estéril quando contrastada com um senso do que parece significar estar verdadeiramente vivo.
Essa é uma mudança sutil, é claro, especialmente sob condições limitantes e opressivas, mas é como as pessoas geralmente descrevem seu primeiro encontro com o anarquismo na prática. Pode ser a exuberância de formar um grupo de estudos para resgatar a educação ou a experiência visceral de poder durante um protesto com um grupo de afinidade. Pode ser o orgulho de tornar comum as capacidades e recursos para estabelecer um novo centro social. Ou talvez a graça de estabelecer maneiras coletivas de atender às necessidades materiais. Fazer nós mesmos juntos, não para acumular fortunas ou acumular poder, mas para cunhar ricas novas relações de compartilhamento e gentileza, sempre prioriza qualidade acima da quantidade, demarcando novos termos baseados em como cada um gostaria de ver tudo feito, cooperativamente e através de meios democraticamente diretos, voluntaria e solidariamente. É sobre mover-se para longe de uma visão de mundo instrumental para uma baseada no valor intrínseco de cada pessoa.
Essa dimensão qualitativa dentro do Anarquismo não é somente uma sensação, ajudando as pessoas a sobrepujar o peso da alienação sob o Capitalismo. Muitos projetos anarquistas são também modelos de como alcançar as necessidades diárias, de forma a em última instância superar a deprivação material que o capitalismo impõe à maioria da humanidade. Ambos são elementos vitais da transformação revolucionária. O Capitalismo indicou que os seres humanos podem alcançar uma sociedade pós-escassez – um mundo no qual cada um tem o suficiente do que precisa para sustentar a vida. Mas a despeito de supermercados, confeitarias e lixões transbordando de comida, bilhões de pessoas passam fome; a despeito de tecnologias para reduzir o trabalho humano, a maior parte das pessoas trabalha mais por menos; a despeito de avanços nos cuidados de saúde, muitas morrem sem necessidade. Enquanto isso, o consumo foi transformado em um barômetro do valor de cada um, uma busca sem fim pela felicidade a partir de escolhas comodificadas. E sempre há a premissa de o que cada um tem para trocar por esta abundância, ou então ela o estará negada.
Os projetos anarquistas, em contraste, buscam reorientar o todo da produção. Como oposição direta ao capitalismo, eles buscam desenvolver formas auto-geridas de produção que permitam às pessoas ver elas mesmas naquilo que fazem e reconhecer outros naquilo que produzem. Elas transformam noções de produção e trabalho conjuntamente, de forma que as pessoas possam fazer coisas de acordo com suas inclinações pessoais, e assim o “trabalho” se torna uma forma prazerosa de preencher coletivamente as bases materiais da vida. Eles objetivam garantir plenitude também, baseado na crença de que todos merecem sustentabilidade material apenas em virtude de serem humanos. Os projetos anarquistas também tentam reorientar o consumo. Eles se constróem sobre a ideia de que quando as pessoas se vêem refletidas naquilo que criam, as “coisas” carregam um senso de “divindade” – o cuidado e a individualidade que vai em fazer coisas. Eles transformam noções de consumo conjuntamente, mudando o foco em direção ao uso e reuso, via compartilhamento, presenteamente e trocas. Destas formas, o Anarquismo caminha em direção a novos entendimentos sobre o que é felicidade, sem mencionar o “valor humano”, fora da forma comodificada.
Os anarquistas desenham pequenos experimentos com grandes objetivos para permitir que as pessoas alcancem suas necessidades e desejos, sejam ecológicas, façam novas relações sociais, organizem espaços e organizações e tomem decisões conjuntamente – tudo em formas não hierárquicas. Um projeto chamado Food Not Bombs (Comida Não Bombas) iniciou em Cambridge, Massachussets, em 1980, e foi traduzido e adaptado a outros contextos pelo mundo. Ligado em nome e em ssensibilidade, mas operando autonomamente em cada localidade, Food Not Bombs desafiava as relações das pessoas com a produção e o consumo de alimentos. A ideia é que as pessoas estabeleçam contra-instituições bem como estilos de vida que ganhem força – porque elas capturam os corações, as mentes e a participação de pessoas suficientes – para em última instância existir ou até mesmo finalmente vencer, em uma contestação vitoriosa, ao poder centralizado.
Esforços como Food Not Bombs (ou derivativas como Food Not Lawns (Comida Não Gramados), Homes Not Jails (Casas Não Celas), e Books Through Bars (Livros Através das Grades)), assim como muitos projetos anarquistas, muitas vezes operam largamente dentro de uma subcultura, que pode ser uma fase necessária para testar nossas ideias e desenvolver uma infraestrutura. Como qualquer alternativa, elas podem cair na cooptação ou simplesmente na confortável rotina. Como ninguém é dono destes projetos, anarquistas e outros podem brincar com e construir sobre eles. Se alguém contasse quantas pessoas foram “servidas” pelos projetos e iniciativas anti-autoritárias – o número de pessoas cujas necessidades por comida ou habitação são atendidas de uma forma razoavelmente consistente – este número chegaria facilmente a casa dos milhões, globalmente. Aqui, aparece novamente a necessidade de linhas mais claras de interdependência e apoio mútuo entre as diversas iniciativas, movimentos e coletivos que estão na luta anti-hierárquica.
Uma das coisas mais importantes sobre caminhar em direção ao um mundo melhor é entender como as pessoas o estão fazendo. As práticas anarquistas compartilham elementos distintivos, mesmo que implementados de formas diversas: as vidas e as comunidades que eles tentam estabelecer são baseadas na premissa de um compasso ético compartilhado. Essa é a chave, dado que a maior parte das forças sociais da atualidade negam e tentam destruir estas alternativas. Os esforços reconstrutivos para reestruturar a vida do cotidiano implica que pessoas podem trabalhar para destruir relações comodificadas e coercivas. Elas também sustentam pessoas pelo trabalho duro de fazer justamente isso.
Um Compasso Ético
O Anarquismo serve como uma pedra fundamental não simplemente para anarquistas mas especialmente para aqueles que encontram o desafio anarquista: “Qual é a coisa certa a fazer?”. Os anarquistas clássicos a chamaram simplesmente de “a Ideia”. O Anarquismo permanece como um farol através de sua história e suas práticas, e talvez mais especialmente através de seus ideais.
Outras filosofias políticas diferentes do Anarquismo aceitam o status quo como dado, e então buscam entender o que é possível dentro de um panorama pré-determinado. Não quer dizer que outras filosofias políticas não tenham suas próprias orientações éticas, mas o Anarquismo mantém suas éticas na frente, como uma questão central antes de tudo o mais.
Os anarquistas também querem ser eficientes e efetivos. Mas para eles, a ética dá forma a como as pessoas pragmaticamente lutam pela mudança social. Por exemplo, antes de afirmar que não é factível incluir todos de uma ampla região nas decisões que afetam suas vidas, os anarquistas argumentarão que, pelo fato deste objetivo ser tanto desejável quanto ético, nós devemos descobrir como caminhar nesta direção e em última instância garanti-lo.
Os anarquistas não querem pular de uma sociedade baseada no estado para uma não estatista da noite para o dia; mas significa, isso sim que os anarquista vêem processos de tomada de decisão coletivos e inclusivos como parte integral e necessária de cada projeto. Quando anarquistas reúnem-se a seus vizinhos para salvar uma livraria local, eles sugerem uma assembléia geral como o “corpo organizativo”, e oferecem suas habilidades para fazê-la funcionar. Eles irão se encontrar para determinar a melhor estrutura coletiva para seu novo “infoshop”, mesmo que tome um pouco mais de tempo, ao mesmo tempo em que educam a si mesmos em direção a processos democráticos no micronível de forma a estender estas práticas ao todo da organização social.
Nunca é uma questão de ética versus pragmatismo: é uma questão de qual informa à outra. Humanos tem demonstrado capazes de uma imaginação e inovação quase ilimitada – qualidade que podem ser ditas definidoras dos seres humanos. As pessoas tem usado esta capacidade para fazer tanto um grande bem quanto um grande mal. Faz sentido primeiro perguntar às pessoas o que elas querem fazer e porquê, de um ponto de vista ético, e então ir às perguntas pragmáticas sobre como fazer. O próprio processo de perguntar o que é certo é como as pessoas preenchem de ética a prática, para atender novas demandas e dilemas, novas condições e contextos sociais.
O Anarquismo, então, traz uma ética igualitária em nosso mundo, fazendo-o transparente, público e compartilhado. Ele mantém uma orientação ética, enquanto continuamente tenta colocar estas noções em prática, independente de quão falho o esforço possa ser. Quando outras pessoas entram em contato com este compasso ético, elas irão esperançosamente “tomá-lo para si” e incorporar os mesmos valores em suas vidas. Ele oferece direcionalidade para o envolvimento político e fortalece os esforços das pessoas para refazer a sociedade. Ele transforma sobreviver em prosperar. Esta é a diferença crucial entre um impulso pragmático versus um ético: as pessoas, em acertos cooperativos, qualitativamente transformam a vida uns dos outros.
É claro, existe uma enorme barreira psicológica para pular de uma situação a outra. Muitas pessoas, afinal de contas, estão lutando apenas para continuar vivendo. O Anarquismo combina o projeto combinado de tentar criar as condições materiais que libertem as pessoas de forma suficiente para fazer esta mudança. Sua orientação ética implica em um humanismo subjacente e esforços vívidos de humanidade. Ele tenta praticar a boa sociedade, com outros, dentro da casca da “não-tão-boa sociedade”. O objetivo do Anarquismo não é tornar todos anarquistas. É encorajar as pessoas a pensarem e agirem por elas mesmas, mas fazer isso a partir de um conjunto de valores emancipatórios.
Ética não é uma entidade fixa mas ao invés disso um questionamento contínuo do que significa ser uma boa pessoa em uma boa sociedade. Ela se desenha a partir da tríade clássica das aspirações filosóficas: o bom, o verdadeiro e o belo. Estes são os pontos de partida para as questões do anarquismo bem como seu modelamento das respostas. Em um mundo que parece – que é – crescentemente errado, o compasso ético do Anarquismo atua como um antídoto. Isso sozinho já é uma contribuição enorme.
(continua…)
Outras Partes:
Parte 1 – O Anarquismo e suas Aspirações
Parte 2 – Looking Backward
Parte 3 – Adiante! e Filosofia da Liberdade
Parte 4 – A Vida como um Todo
Parte 5 – O Conteúdo Ético
Parte 6 – Orientação Ecológica
Parte 7 – Acenando em direção à Utopia
Parte 8 – A Promessa Anarquista para uma Resistência Anticapitalista
Parte 9 – Democracia é DIreta (em 12/10)
Parte 10 – Retomada das Cidades: do Protesto ao Poder Popular (em 19/10)
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