Apontamentos Anarquistas

O Anarquismo e suas Aspirações – parte V

O Conteúdo Ético

Vamos apreciar a seguir os parâmetros, em breves pinceladas, desta ética anarquista comunal. Isso não significa mostrar a pintura completa, já que uma ética da liberdade deve ser construída e expandir com o tempo. Mas podemos tocar em algumas das aspirações mais proeminentes que unem os anarquistas.

Liberação e Liberdade

O Anarquismo promove uma noção dual de liberdade. Ele afirma a ideia de liberação, ou o que pode ser chamado de liberdade negativa: “estar livre de”. Mas está igualmente preocupado com o que pode ser chamado de liberdade positiva: “liberdade para”. Não é suficiente para as pessoas serem livres, por exemplo, do estado dizer a elas o que podem fazer com o seu corpo – como se elas podem fazer aborto ou não. Elas também precisam ser livres para fazerem coisas com o seu corpo – expressar várias sexualidades e gêneros, o que vai bastante além do que qualquer estado pode garantir ou tirar.

Se entendermos este senso de liberdade negativa e positiva, o que parece uma instância contraditória dentro do anarquismo passa a fazer perfeito sentido. Um anarquista pode firmemente acreditar que o povo Palestino merece ser liberado da ocupação, mesmo que isso signifique que eles criem seu próprio estado. O mesmo anarquista poderá firmemente acreditar que um estado Palestino, assim como todos estados, deve sofrer oposição em favor de instituições não estatistas. Um senso completo de liberdade sempre incluirá tanto os sensos negativos e positivos – neste caso a liberação da ocupação e simultaneamente a liberdade para se autodeterminar. De outro modo, como tanto os regimes Comunistas e liberais tem demonstrado, “estar livre de” tão somente apenas servirá para escravizar a potencialidade humana e, nos casos mais extremos, os próprios humanos; auto-governo é negado em favor de alguns governando outros. E “liberdade para” sozinha, como o capitalismo tem mostrado, servirá apenas para promover um individualismo egoísta e colocar cada um contra o outro; a autodeterminação atropela as noções de bem coletivo.

Constantemente trabalhar para trazer tanto a liberação quanto a liberdade à mesa,  nos momentos de resistência e reconstrução, faz parte do mesmo ato de aproximar  um mundo crescentemente diferenciado mas ainda harmonioso.

A Igualdade dos Desiguais

As pessoas não são iguais, e isso é algo bom. Comunidades, geografica e socialmente, também são diferentes umas das outras. Eis porque os humanos precisam ser livres para descobrir o que faz mais sentido para cada pessoa em cada situação. O Anarquismo acredita na habilidade de cada um em tomar parte do processo de pensar e agir sobre, de formas compassionadas, o mundo em que habitamos.  Ele mantém que todos merecem dar forma e compartilhar a sociedade – um princípio subjacente a toda ordem não-hierárquica. Mas não significa que todas as pessoas tem necessidades e desejos iguais, tampouco que estes sejam estáveis. As pessoas querem coisas diferentes através de suas vidas, bem como as comunidades tem demandas diferentes ao longo do tempo.

A ética anarquista da igualdade dos desiguais esmaga a noção desumanizante do capitalismo que todas as coisas, incluindo cada pessoa, é substituível – igual a uma coisa, e assim sem valor inerente – substituindo-a com o conceito rehumanizante do valor de cada indivíduo. Ela dá sentido qualitativo à justiça. Nas democracias representativas, a justiça é cega à singularidade de cada pessoa e à especificidade de cada circunstância. As particularidades dificilmente são medidas, e a “justiça”  é medida de formas largamente injustas. No anarquismo, ser justo significa estar atento às diferenças entre as pessoas e suas situações, o que por sua vez torna ao menos possível negociar relações pessoais e sociais, incluindo conflitos, de formas que são substantivamente justas. Todos e todas coisas tem valor igual e devem igualmente ser dadas condições de forma a se desenvolver completamente. Quais são estas condições, entretanto, pode diferir em quantidade e qualidade, baseado nas diferenças nas necessidades e desejos. Por exemplo: um cuidado de saúde ético não será uma lista básica de serviços, como se os corpos das pessoas fossem todos iguais. Nem será distribuído em porções exatamente iguais. Ela será, pelo contrário, ajustada de acordo com as necessidades de bem-estar individuais como um bem social sempre disponível, de forma tão abundante quanto possível.

A Cada, de Cada

Além da crença fundamental no valor de cada pessoa, uma ética igualitária anarquista também segue a noção comunista de “de cada um de acordo com suas habilidades, a cada um de acordo com suas necessidades”. Mas o Anarquismo lhe dá um ajuste crucial: “de cada um de acordo com suas habilidades e paixões, a cada um de acordo com seus desejos e necessidades”. Com esta visão, as pessoas contribuem de várias formas entre se e para suas comunidades e não simplesmente de uma forma econômica. Essa ética ajuda a colocar “a economia” dentro da totalidade da vida, e não o contrário, como vemos hoje. Nunca mais as contribuições serão desigualmente recompensadas por salários ou status, ou tornadas invisíveis quando elas não se encaixam na matriz econômica. A pletora das contribuições humanas será baseada no que as pessoas são boas em fazer, o que elas gostam e também o que elas coletivamente determinarem como desejável bem como necessário. As necessidades de uma pessoa (luvas de lã, maçãs ou livros) podem ser o desejo de outra pessoa. Em uma boa sociedade, as pessoas poderão satisfazer tanto quanto possível de ambos.

Todas as contribuições tem valor social, desde construir casas a cuidar de bebês a atuar em uma peça de teatro. Cada um deveria ser apto a focar nas coisas que querem fazer. Mesmo que algumas pessoas não possam trabalhar em diferentes pontos da vida – por exemplo, como uma criança muito jovem ou quando doentes – todos ainda receberiam o que necessitam e desejam. O trabalho em si mesmo teria um significado totalmente diferente, talvez até mesmo outro nome. A produção e a distribuição não iriam envolver compulsão ou adição, nem se tornar distintas de “tempo livre”. Elas seriam partes íntimas do que traz prazer substância à vida humana. As contribuições sociais assim, passar a ir além da noção limitada acerca daquilo que cada um é pago para fazer. Em seu lugar, a sensibilidade do “de cada, para cada” entende que cada um contribui para a sociedade mesmo que não esteja produzindo bens ou ofertando serviços. Ela garante que cada um é merecedor das bases materiais e não materiais para se desenvolver completamente.

Sem coerção ou escassez deliberadamente construída e mantida, as pessoas iriam fazer praticamente tudo que as comunidades precisassem ou quisessem, e as pessoas iriam escolher livremente aquilo que mais lhes dá prazer e gostam de fazer, como cultivar a terra, preparar comidas, escrever, pintar, apagar incêndios e desenvolver softwares… Aquilo que ninguém quiser fazer, como por exemplo, limpar um sistema de esgoto, seria dividido entre todos, ao menos entre todos aptos a fazê-lo. Assim, mesmo um médico poderia, uma vez ao ano, por exemplo, ficar responsável por este trabalho, para garantir o harmônico funcionamento da sociedade.

Essa ética também sustenta a ideia de que todos devem ser providos e cuidados, ou então, que as pessoas irão prover e cuidar umas das outras. Ela afirma que as comunidades humanas devem garantir que todos tenham o suficiente para se sustentar, como cuidados de saúde, e se enriquecer, como acesso a artes. Em caso de um acidente natural como um terremoto, por exemplo, as pessoas irão fazer seu máximo para distribuir os recursos limitados de forma a tomar cuidado de todos.

Uma biblioteca é um exemplo atual de como isso funcionaria: as pessoas veem as bibliotecas como algo necessário, útil e justo, todos podem usar a biblioteca, mais ou menos, conforme sua necessidade, e não sentem o senso de escassez. Tudo está gratuitamente disponível para todos. Elas podem usar a biblioteca gratuitamente ou, se desejarem, podem retribuir na forma de doações de tempo, serviços, livros ou dinheiro. Agora, imaginemos que tudo, desde energia até a educação funcionasse com esta ética do “de cada, para cada”. Muitos dos melhores experimentos anarquistas da atualidade estão tentando colocar esta noção em prática, desde cooperativas de alimentos e bicicletas, a comaprtilhamento de habilidades e clínicas grátis.

Apoio Mútuo

Baseado na premissa de que os humanos e o mundo não-humano parecem evoluir melhor quando existe cooperação, mesmo reconhecendo a competição como parte inerente da vida, é quando os humanos trabalham juntos que eles realmente florescem!

O apoio mútuo necessita relações complexas e intricadas bem como uma diferenciação harmoniosa para que hajam trocas recíprocas verdadeiras. Quando as pessoas cooperam, são aptas a produzir mais, materialmente e de outras formas. Mesmo quando não produzem mais, o senso de benefício individual e grupal é amplificado. A competição simplifica. Quando humanos competem, apenas alguns ganham. Isso faz sentido quando falamos de jogos; no contexto da sociedade, onde todos deveriam “ganhar” um mundo melhor, a competição é amplamente deletéria. Isso é particularmente verdadeiro quando se torna naturalizado como o valor chave da economia, jogando todos contra todos. Os anarquistas praticam há muito tempo formas de mutualismo como a base de uma economia não capitalista, onde a cooperação liga todos com todos.

O apoio mútuo é uma das éticas anarquistas mais belas. Implica em um senso de generosidade sem amarras, no qual as pessoas suportam umas às outras bem como os projetos uns dos outros. Ele expressa um espírito de mão aberta, de abundância, no qual a gentileza nunca está em falta. Ele aponta para novas relações de compartilhamento e ajuda, orientação e retribuição, como a verdadeira base da organização social. O apoio mútuo torna a compaixão comunal, traduzindo-se em mais “segurança social” para todos, sem a necessidade de instituições top-down. É a solidariedade em ação, escrita em letras grandes, quer seja ao nível local ou global.

Quando sentida e vivida fora da sensibilidade diária, em combinação com outras éticas anarquistas, a cooperação cria relações sociais diferentes, que oferecem à humanidade as melhores chances de transformar os valores da sociedade hierárquica. Em uma sociedade hierárquica, a caridade é uma forma de “dar” que não importa quão benevolente seja, acaba forjando relações paternalistas. Quem doa está em posição de autoridade; quem recebe sempre à sua mercê.

O apoio mútuo sugere relações recíprocas, independente de se o que é trocado é igual em tipo, forma ou quantidade. Humanos retribuem de várias formas – a desigualdade dos iguais. Indivíduos e sociedades florescem porque as diferentes contribuições  não tem o mesmo valor mas combinam-se para criar um todo maior.

 

(continua…)

Outras Partes:

Parte 1 – O Anarquismo e suas Aspirações

Parte 2 – Looking Backward

Parte 3 – Adiante! e Filosofia da Liberdade

Parte 4 – A Vida como um Todo

Parte 5 – O Conteúdo Ético

Parte 6 – Orientação Ecológica

Parte 7 – Acenando em direção à Utopia

Parte 8 – A Promessa Anarquista para uma Resistência Anticapitalista

Parte 9 Democracia é DIreta (em 12/10)

Parte 10 – Retomada das Cidades: do Protesto ao Poder Popular (em 19/10)

Um comentário

  • Victor

    Maravilha o teu site, Rafael! Espero voltar a morar em PoA logo que passar no concurso da UFRGS… Quero voltar a ter tempo pra me dedicar a melhorar esta cacaca que é o mundo hoje. Grande abraço do teu amigo Victor! =)

Deixe uma resposta

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.