Experimentalismo,  Literatura

Uma Aldeia chamada Linguagem

Querido amigo Hiperativo Confuso:

Como havia lhe prometido, estou escrevendo sobre esta nova terra que acabei de conhecer. Nem lembro direito como cheguei a ela, acho que foi depois de dobrar à direita após uma ravena passando uns cinqüenta quilômetros do Himalaia.

O que importa é que tudo transcorreu bem e agora estou aqui, pronto para seguir jornada para mais uma aventura. Mas antes, tenho que lhe falar deste povo que conheci e de seus costumes.

Viviam em uma Aldeia hermeticamente fechada chamada Linguagem.

Me disseram que seus ancestrais eram todos de origem grega.

Cada qual com sua função, seu porquê, seu destino. Dividiam sua comunidade entre os trabalhadores braçais, os responsáveis pelas idéias e os donos da palavra.

Dentre os primeiros, quem conheci logo na chegada à Aldeia foi Elipse, um funcionário público difícil de encontrar em seu local de trabalho. Quando ia às compras – que foi quando lhe conheci – tinha a mania de perguntar o preço de tudo, mesmo sabendo que não iria comprar:

– Quanto custa? (o sapato)

– Quanto custa? (o abajur)

– Quanto custa? ( a garrafa de vinho)

Elipse tinha um irmão chamado Zeugma. Este irmão era singular em um aspecto: detestava repetir qualquer coisa que já houvera dito anteriormente, mesmo de forma oculta. Dizia:

– Eu te conto uma piada, você me conta outra.

– Outra o quê?

– Grrrrr! – resmungava, já irritado.

Vizinho de Elipse e Zeugma, Polissíndeto é empregado de uma fábrica de calçados, onde é responsável por unir a sola com a base dos sapatos. Seu irmão gêmeo, Assíndeto, trabalhava na mesma fábrica, e revisava calçados que não ficavam bem ligados pela cola que era usada.

Dizia Polissíndeto, quando brigava com o irmão:

– Estou cansado de chorar e sofrer e perder e me conter e de ouvir e ocultar e viver.

Ao que lhe respondia prontamente Assíndeto:

– Pois então, chorando, sofrendo, perdendo, contendo, ouvindo, ocultando, enfim, sentindo é que vou levando a vida assim, feliz!

Pleonasmo trabalhava no depósito de lixo da comunidade. Lá tinha o que fazer em abundância. Como não tinha estudo, ficava repetindo o que os outros diziam e, ainda, repetia a si mesmo para reforçar suas idéias. Bradava:

– Naquele dia em que roubaram os galináceos do padre Metáfora, vi claramente visto o ladrão.

Ou ainda, nos dias em que bebia um pouco além de sua capacidade de metabolizar o álcool:

– Não vejo a hora de entrar pra dentro de minha casa e subir para cima até meu quarto e capotar na cama.

Pleonasmo era apaixonado por Iteração, cujo apelido carinhoso era Repetição, com a qual tinha muitas afinidades de idéias:

– Como é triste, triste mesmo e muito triste este mundo, não achas, Pleonasmo? Não quero um mundo assim, pobre assim, triste assim…

Pessoa estranha era a professora Anáfora: tinha o cacoete de começar todas suas explicações com “se”:

– Se você somar dois mais dois, temos quanto Subjetivo?

– Se as nuvens são feitas de vapor d’água, quais são os elementos que formam a nuvem, Oração Subordinada?

– Se você cantasse

Se você gritasse

Se você urrasse

Se você esperneasse, alguém te ouviria!

O arquiteto Anacoluto, esposo de Anáfora, era um sujeito quase incompreensível. Suas frases pareciam sem seguimento, davam a impressão de não conter uma ordem lógica:

– Estamos aqui, a construir este prédio. E veja, o Sol desce calmamente no horizonte enquanto a humanidade desfalece prematura. As pessoas, os tijolos…

O melhor amigo de Anacoluto, Hipérbato, parecia ter saído daqueles livros de antigamente pois falava de forma invertida, o que todos achavam muito engraçado:

– Pois então, Lutinho, te dizia, é a liberdade, branca que nos põe a caminho.

Um dos lugares que os amigos mais gostavam de ir nos fins-de-semana era a casa de campo de Hipérbato. Lá, vim a conhecer o caseiro, que se chamava Aliteração. Já na chegada, fomos extremamente bem recebidos:

– Faz favor, feche o ferrolho! Fico feliz fazendo faisão com feijão para a família se fastiar!

A esposa de Aliteração, dona Silepse, fazia um faisão com feijão de deixar a boca, os olhos e os ouvidos abertos. Era uma pessoa muito compreensiva e sensível, sabia o que seu marido queria dizer só pelo olhar.

– Benhê, leva um casaco para seu Anacoluto e dona Anáfora, já que o casal esqueceram que vai esfriar. Aproveita e leva um para seu Hipérbato, que é um criança e se resfria fácil. Se não, eles vão pensar que a gente somos sem alma e inútil.

Nas bibliotecas e cafés filosóficos da comunidade, se concentrava a nata do pensamento da Aldeia: os filósofos, físicos, cientistas sociais e outros teóricos.

A mais antiga representante do grupo, a filósofa Ironia era quem mais questionava o grupo. Era um ponto de interrogação em pessoa. Vivia dizendo o contrário do que pensava, satirizando e questionando o comportamento dos outros com a intenção de ridicularizar.

– E então caro amigo Eufemismo, deves sentir-se bem com seu belo par de novos chifres.

– Não fale deste jeito, Ironia. Eu e minha esposa, desde sempre nos entendemos muito bem. Nos últimos tempos apenas descobri que a compreensão dela é um pouco mais ampla.

Ao qual intrometeu-se o químico Hipérbole:

– Se eu estivesse em seu lugar Eufemismo, já haveria de ter posto fim à minha vida. Setecentas mil vezes eu teria dado cabo à minha vida. Sofrimento igual nem em um milhão de mundos.

Ao que Antítese, poeta que tudo percebe, frente e verso, e que também por lá estava, retrucou (parafraseando Camões):

-“Amor é fogo que arde sem se ver;

É ferida que dói e não se sente;

É um contentamento descontente;

É dor que desatina sem doer.”

Outros membros da Confraria das Idéias são o músico Apóstrofe, o inventor Gradação e a contadora de histórias Prosopopéia.

Apóstrofe adorava em suas canções interromper a música para invocar alguém ou algo:

– Tempestade! Tempestade!

Quantas vidas já ceifaste

Neste lamaçal que tua água produz

Tempestade! Tempestade!

Que cruel consegues ser

Ao esconder do Sol a luz.

Gradação é uma pessoa que poderíamos chamar de fatalista: tinha tudo previamente determinado, seguindo uma seqüência pré-estabelecida até a plenitude ou até o vazio:

– Não há porque lutar contra a morte, inequívoca verdade que transforma nossa beleza em corpo em degradação, em cinza, em pó, em lembrança, em nada.

Prosopopéia era “contadora de histórias” em uma organização não-governamental que auxiliava crianças com câncer. E como era boa no seu trabalho! Fazia as pedras andarem, dava vida a suas histórias. Contava assim:

– Enquanto a noite dormia, em cada esquina os paralelepípedos preparavam a revolução; os postes, outrora sempre quietos, arrepiavam-se ao ouvir as notícias que voavam velozmente por entre os becos…

Havia ainda na comunidade mais duas figuras interessantíssimas que não poderia deixar de lhe fazer conhecer.

O primeiro deles, Metonímia, era um político de prestígio, governante da Aldeia inclusive (pelo que consta, têm os cidadãos desta Aldeia memória curta, sendo que Metonímia aproveitava esta característica para, ao final de cada mandato eleitoral, mudar de nome para conseguir a reeleição).

Seus comícios eram impagáveis, tive oportunidade de presenciar um:

– Meu povo, minhas cabeças! Venho até vós levantando minha bandeira em torno de uma bandeira comum: nossa amada Aldeia! Cheguei aqui pela primeira vez a vapor, mas lhes digo, como seu representante maior: preciso fosse, viria até de vela! Pelo povo linguageense, faria brandir meu ferro se necessário para defender a honra e a terra deste chão que tanto prezo!

No canto do palanque, outra personalidade única: o padre Metáfora, chefe maior da Igreja na comunidade, mestre em transportar para uma coisa o nome da outra:

Em suas missas, dizia:

– Este é o corpo de Cristo: Comei! Tomai: este é o sangue de Cristo! Seu sofrimento foi o pagamento de nossos pecados…

Agora, enquanto termino de escrever esta carta para você, meu amigo, lembro ainda do motorista do táxi que me trouxe até o aeroporto. Chamava-se Catacrese:

– E então, para onde vamos? Vais avionar, transatlanticar ou onibiar?

Realmente um povo muito estranho. Costumes esquisitos que não havia visto igual em nenhuma de minhas viagens, exceto, talvez, no Brasil.

Te mando outra carta depois de melhor conhecer meu próximo destino: Utopia.

Um abraço sincero e afetuoso,

Neurótico Lunático Anônimo

Rafael Reinehr é médico endocrinologista, anarquista, escritor, permacultor, ativista oikos-socio-ambiental e polímata ma non troppo.

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