Apontamentos Anarquistas

Nicolas Walter – Do Anarquismo

“O que os anarquistas rejeitam é a institucionalização da organização, o estabelecimento de um grupo particular cuja função é organizar outras pessoas. A organização anarquista seria fluida e aberta; assim que uma organização endurece e se fecha, cai nas mãos de uma burocracia, torna-se instrumento de uma classe e expressão da autoridade, em vez de elo de coordenação da sociedade. Todo o grupo tende para a oligarquia, o governo de poucos, e toda a organização tende para a burocracia, o governo dos profissionais; os anarquistas devem lutar sempre contra tais tendências, tanto hoje como amanhã, quer na própria casa quer na casa alheia.”

“Uma forma atenuada de ação inspirada pelo niilismo é a boêmia: (…) em vez de atacar a sociedade, o boêmio escapa dela – ainda que nela viva e a seu cargo, muito embora viva sem se conformar com os valores da dita sociedade.”

“…o que podemos sugerir de mais importante não é apenas que o fim não justifica os meios, mas também que os meios determinam o fim: os meios são fins, na maior parte dos casos. Podemos estar certos das nossas próprias ações, mas não das suas conseqüências.”

Nicolas Walter propõe neste livro uma reflexão sobre os primeiros 100 anos do Anarquismo. Foi escrito na Inglaterra em 1969 e expressa a opinião pessoal do autor que se seguiram a 15 anos de leituras e discussões acerca do anarquismo e depois de 10 anos de atividade no movimento e na imprensa anarquistas. Fiquemos, pois, com suas palavras.

Liberalismo e Socialismo

“Como os liberais, os anarquistas querem a liberdade; como os socialistas, querem a igualdade (…). A liberdade sem igualdade significa que os pobres e os fracos são menos livres que os ricos e os fortes, e a igualdade sem liberdade significa que somos todos escravos em conjunto.”

“Os anarquistas conideram o progresso de maneira totalmente diferente; na realidade, consideram muitas vezes que não há progresso algum. Nós vemos a história não como um desenrolar linear ou dialético numa determinada direção, mas como um processo dualista. A história de todas as sociedades humanas é a história de uma luta entre governantes e governados, entre opulentos e miseráveis, entre os que querem comandar e ser comandados e os que querem libertar-se, assim como aos seus camaradas; os princípios de autoridade e de liberdade, de governo e de rebelião, de Estado e de sociedade estão em perpétuo conflito.”

“A nossa única esperança é que, à medida que o conhecimento e a consciência se desenvolvem, as pessoas tornar-se-ão mais aptas para descobrirem que podem organizar-se sem necessidade de nenhuma autoridade.”

“…apoiamo-nos na liberdade de expressão, de reunião, de movimento, de comportamento e particularmente na liberdade de ser diferente; por outro lado, apoiamo-nos na igualdade das posses, na solidariedade humana e particularmente na partilha das possibilidades de decisão.”

“A essência do anarquismo, a única coisa sem a qual não há mais anarquismo, é a recusa da autoridade de um homem sobre outro.”

Democracia e Representação

“…a democracia não é o governo do povo – a democracia é na realidade uma contradição lógica, uma impossibilidade física. A verdadeira democracia só é possível numa pequena comunidade, onde cada um pode tomar parte em todas as decisões; nesse momento, já não é necessária. Aquilo a que se chama democracia, e que se pretende que seja o governo do povo por si mesmo, é na realidade o governo do povo por governantes eleitos e dever-se-ia antes chamá-lo oligarquia consentida.”

“Mesmo no governo mais democrático, há sempre os que ordenam ou proíbem, e os que obedecem.”

“…os anarquistas vão mais longe e sublinham que não temos nenhuma obrigação para com o governo que elegemos. Podemos obedecer-lhe porque estamos de acordo ou porque somos demasiado fracos para desobedecer, mas nada nos força a obedecer-lhe quando estamos em desacordo e somos fortes o suficiente para nos recusar a fazê-lo.”

Estado e Classe

“O Estado não pode redistribuir eqüitativamente a riqueza porque é o principal instrumento da distribuição injusta”.

Organização e Burocracia

“…logo que a obrigação seja substituída pelo consentimento, haverá mais discussões e planos, não menos.”

“O que os anarquistas rejeitam é a institucionalização da organização, o estabelecimento de um grupo particular cuja função é organizar outras pessoas. A organização anarquista seria fluida e aberta; assim que uma organização endurece e se fecha, cai nas mãos de uma burocracia, torna-se instrumento de uma classe e expressão da autoridade, em vez de elo de coordenação da sociedade. Todo o grupo tende para a oligarquia, o governo de poucos, e toda a organização tende para a burocracia, o governo dos profissionais; os anarquistas devem lutar sempre contra tais tendências, tanto hoje como amanhã, quer na própria casa quer na casa alheia.”

A Propriedade

“…o direito de uma pessoa sobre um objeto não repousa no fato de o ter fabricado, encontrado, comprado, recebido, de o utilizar ou de o desejar, ou de ter um direito legal sobre a coisa, mas no fato de ter necessidade dela – mais ainda, de ter mais necessidade dela do que qualquer outra pessoa. Não é uma questão de justiça abstrata ou de lei natural, mas de solidariedade humana e de bom senso. Se eu tiver um pedaço de pão e se tu tiveres fome, ele é teu, não meu. Se eu tiver um casaco e tu tiveres frio, ele pertence-te. Se eu tiver uma casa e se tu não tiveres, tens o direito de utilizar pelo menos um dos meus quartos. Mas, em outro sentido, a propriedade é liberdade – quer dizer que o gozo de bens em quantidade suficiente é uma condição essencial para uma vida agradável para o indivíduo.

Os anarquistas são pela propriedade privada do que não pode ser utilizado para explorar outrem – esses objetos pessoais que acumulamos desde a infância e que fazem parte da nossa vida. Mas somos contra a propriedade pública que não é útil em si mesma e só pode servir para a explorar, a propriedade fundiária e imobiliária, os instrumentos de produção e distribuição, matérias-primas e artigos manufaturados. O princípio, afinal de contas, é que um homem pode ter direito sobre o que produz pelo próprio trabalho, mas não sobre o que obtém pelo trabalho dos outros; tem direito sobre aquilo de que tem necessidade e que utiliza, mas não sobre aquilo de que não tem necessidade e não pode utilizar. Desde que um homem tem mais do que o suficiente, ou esbanja ou impede outrem de ter o suficiente.”

“Ninguém se tornou rico nem continuou a sê-lo pelo seu próprio trabalho, mas só explorando o trabalho de outros.” – (discordo desta sentença, tendo em vista que não leva em conta de forma completa a remuneração advinda daqueles que trabalham de forma autônoma com serviços, como por exemplo um consultor, palestrante, dentista, veterinário, médico, artesão ou artista… Alguns destes e muitos outros podem ser muito bem-sucedidos e chegarem a enriquecer)

Deus e a Igreja

“Muitas pessoas dão ainda os primeiros passos para o anarquismo perdendo a fé e tornando-se racionalistas ou humanistas; a recusa da autoridade divina encoraja a recusa da autoridade humana. A maioria dos anarquistas hoje é provavelmente atéia, ou pelo menos agnóstica.”

O Indivíduo e a Sociedade

“Uma liberdade sexual extrema poderá convir a um e uma extrema castidade a outro (…). O mesmo princípio aplica-se às drogas: as pessoas podem intoxicar-se com álcool , com cafeína, com haxixe ou com anfetaminas, com tabaco ou com ópio, e não temos nenhum direito de as impedir de o fazerem, de as castigarmos, conquanto se possa tentar ajudá-las.”

As diversas correntes do anarquismo

O Anarquismo Filosófico

“Na origem, o anarquismo era o que se chama agora anarquismo filosófico. É a idéia que uma sociedade sem governo é bela, mas não verdadeiramente desejável, ou então é desejável, mas não verdadeiramente possível, pelo menos por enquanto. Tal atitude domina todos os escritos anteriores a 1840 e isso impediu os movimentos populares anárquicos de se tornarem uma ameaça mais séria para os governos. É uma atitude que se encontra ainda nos que se dizem anarquistas, mas ficam à margem de todo o movimento organizado, e também em algumas pessoas situadas dentro do movimento anarquista.”

Individualismo, Egoísmo, Corrente Libertária

“O primeiro tipo de anarquismo que foi mais que simplesmente filosófico foi o individualismo. É a idéia de que a sociedade não é um organismo, mas uma coleção de individualidades autônomas que não tem nenhuma obrigação para com a sociedade, mas apenas umas para com as outras.”

“A primeira pessoa a elaborar uma teoria claramente anarquista foi individualista: William Godwin, em An Enquiry concerning Political Justice (Investigação sobre a Justiça Política, obra publicada em 1793.

“É o anarquismo dos intelectuais, dos artistas e dos não-conformistas, das pessoas que trabalham sós e preferem ficar à margem.” Walter exemplifica com nomes como Shelley, Wilde, Emerson, Thoreau, Augustus John e Herbert Read.

Walter interpreta Max Stirner, em Der Einzige und sein Eigentum (O Único e sua Propriedade), obra publicada em 1843: “o seu egoísmo difere do individualismo em geral, porque rejeita abstrações tais como a moralidade, a justiça, a obrigação, a razão, o dever, em proveito de um reconhecimento intuitivo da existência única de cada indivíduo. Recusa evidentemente o Estado, mas recusa igualmente a sociedade e tende para o niilismo (a idéia de que nada tem importância) e o solipsismo (a idéia de que nada existe fora de si mesmo).

Mutualismo e Federalismo

“O tipo de anarquismo que aparece quando os individualistas põem as idéias em prática é o mutualismo. É a idéia de que, em vez de entregar-se ao Estado, a sociedade deveria ser organizada por indivíduos que concluíssem entre si acordos voluntários, em uma base de igualdade e reciprocidade.”

“Pierre-Joseph Proudhon, em Qu’est-ce que la propriété? (O que é a propriedade?), obra publicada em 1840, postulou uma sociedade composta de grupos cooperativos de indivíduos livres, trocando os produtos indiscpensáveis à vida na base do valor do trabalho e permitindo o crédito gratuito graças a um Banco do Povo. É o anarquismo dos artesãos, dos pequenos proprietários e pequenos comerciantes, dos que exercem profissões liberais e técnicas, das pessoas em suma que estão apegadas à sua independência.”

“O mutualismo econômico pode assim ser considerado como um cooperativismo menos a burocracia, ou um capitalismo menos o lucro.”

“O traço essencial do anarquismo federalista é que os membros de tais conselhos seriam delegados sem nenhuma autoridade executiva, imediatamente revogáveis, e que os conselhos nÃo teriam nenhum poder central, mas apenas um simples secretariado. Proudhon, primeiro teórico do mutualismo, foi também o primeiro teórico do federalismo – na obra Du principe fédératif (Do princípio federativo), publicada em 1863.”

“Os sistemas internacionais de coordenação das ferrovias, da navegação, das ligações aéreas, dos serviços postais, do telégrafo e do telefone, da pesquisa científica, das campanhas contra a fome ou contra os sinistros, e muitas outras atividades à escala mundial são essencialmente de estrutura federativa.”

Coletivismo, Comunismo, Sindicalismo

“Os instrumentos de trabalho serão de propriedade coletiva, mas os produtos do trabalho serão distribuídos segundo a fórmula: “De cada um segundo suas capacidades, a cada um segundo o seu trabalho” Os primeiros anarquistas modernos – os bakuninistas da Primeira Internacional – eram coletivistas” (…), reinvindicavam “o anarquismo da luta de classes e do proletariado, da insurreição em massa dos pobres contra os ricos e a passagem imediata a uma sociedade livre e sem classes, sem nenhum período transitório de ditadura. É o anarquismo dos operários e dos camponeses que têm uma consciência de classe, dos militantes do movimento operário, dos socialistas que querem tanto a liberdade como a igualdade.”

“O tipo de anarquismo que aparece num coletivismo mais elaborado, é o comunismo. É a idéia de que não é suficiente que os meios de produção sejam propriedade de todos, mas que os produtos do trabalho devem também ser postos em comum e distribuídos segundo a fórmula: “De cada um segundo as suas capacidades, a cada um segundo as suas necessidades.” Walter cita como anarquistas-comunistas: Kropotkin, Malatesta, Reclus, Grave, Faure, Goldman, Berkman, Rocker.

“O comunismo anarquista ou libertário não deve ser evidentemente ser confundido com o comunismo muito mais conhecido dos marxistas – comunismo baseado na propriedade coletiva da economia e no controle do Estado sobre a produção e a distribuição e baseado também na ditadura do Partido.”

“Os anarquistas só raramente são verdadeiros comunistas, em parte porque são sempre demasiado individualistas, e em parte também porque se recusam a fazer planos precisos para um futuro que deve ter liberdade plena para organizar-se.”

O que querem os anarquistas?

O Indivíduo Livre

“Tudo o que é necessário para a libertação do indivíduo é a emancipação dos velhos preconceitos e a obtenção de um certo nível de vida. O verdadeiro problema é a libertação da sociedade.”

A Sociedade Livre

“Em vez de um governo formado por representantes permanentemente eleitos ocasionalmente e por burocratas de carreira quase inamovíveis, os anarquistas querem uma coordenação efetuada por delegados temporários, imediatamente revogáveis, e por peritos profissionais de fato responsáveis. Em tal sociedade, todas as atividades sociais que implicam uma organização, seriam provavelmente administradas por associações livres. Pode-se chamar-lhes conselhos, cooperativas, coletividades, comunas, comitês, sindicatos ou sovietes, ou qualquer outra coisa…”

O Trabalho

“As necessidades elementares do Homem são a alimentação, o teto e o vestuário, que lhe permitem sobreviver; as necessidades secundárias são algumas comodidades suplementares, que fazem com que a vida valha a pena ser vivida.”

“A maioria dos economistas preocupou-se mais com a produção do que com o consumo (…). Os homens de esquerda e de direita querem todos que a produção aumente, ou para que os ricos enriqueçam, ou para que o Estado se reforce, e daí resulta uma “sobreprodução” vivendo lado a lado com a pobreza…”

“Os anarquistas preocupam-se mais com o consumo do que com a produção – com a utilização dos bens para a satisfação das necessidades de todos, não para o aumento do lucro dos ricos e poderosos.”

A Sociedade do Bem-Estar

“Vários pensadores anarquistas trouxeram contributos de valor à teoria e à prática da educação e vários reformadores da educação tiveram tendências libertárias – de Rousseau e Pestalozzi a Montessori, A. S. Neill e Freinet. Idéias que se julgava utópicas, estão agora integradas no ensino tanto público quanto privado e a educação é talvez o domínio da sociedade mais entusiasmante para os que querem pôr o anarquismo em prática. Se nos disserem que o anarquismo é uma idéia atraente mas inaplicável, basta-nos mostrar uma escola de vanguarda, uma turma de adaptação praticando métodos ativos, um clube de jovens autogerido.”

“Os adultos encarregados da educação têm geralmente tendência para controlar todas as suas formas; na verdade, não é necessário que ela seja controlada por eles, nem por razões ainda mais óbvias pelas pessoas que nada têm a ver com o assunto.

Os anarquistas gostariam que as reformas atuais do ensino fossem muito mais longe. Não se deveria abolir apenas a disciplina rígida e os castigos, dever-se-ia abolir toda a disciplina e toda a punição. Não se deveria libertar as instituições de ensino apenas do poder das autoridades exteriores, os próprios alunos deveriam ser libertos do poder dos professores e dos diretores. Numa relação educativa sã, o dato de um saber mais do que o outro não é a razão para que o professor tenha uma autoridade qualquer sobre o aluno. O estatuto dos mestres na sociedade atual baseia-se na idade, na força, na experiência, na lei; mas o único estatuto que os mestres deveriam ter, deveria basear-se nos seus conhecimentos em determinado campo e na capacidade para ensinamentos em determinado campo e na capacidade para ensiná-lo e, por fim, na capacidade para inspirarem a admiração e o respeito.”

“O problema essencial é quebrar o elo entre ensinar e governar e libertar a educação.”

“Que pensam os anarquistas da delinqüência? Em primeiro lugar, consideram que a maioria daqueles a que se chama criminosos, são como as outras pessoas, apenas um pouco mais pobres, mais fracos, mais loucos, mais infortunados; em segundo lugar, que os que prejudicam os outros vezes e vezes sem conta, não deveriam ser punidos a seu turno, mas que seria necessário que alguém tomasse conta deles. Os maiores criminosos não são os arrombadores, mas os patrões; não são os gângsteres, mas os governantes; não são os assassinos, mas os que exterminam em massa. Algumas injustiças menores são amarradas ao pelourinho e punidas pelo Estado, enquanto as maiores injustiças da sociedade atual são dissimuladas e mesmo cometidas pelo próprio Estado. Em geral, a punição causa um dano maior à sociedade que o crime; é mais sistemática, está melhor organizada e é muito mais eficaz.”

“Como último recurso (para a delinqüência), não se imporá a prisão nem a pena de morte, mas o boicote ou a expulsão.”

O Pluralismo

“…é difícil que alguém se baste literalmente a si mesmo.”

“Um perigo maior pode vir da parte de grupos independentes. Uma comunidade separada poderá existir facilmente em uma sociedade e poderá provocar graves tensões; se regressar ao sistema de propriedade e de autoridade, o que poderá aumentar o nível de vida de uma minoria, outras sentir-se-ão tentadas a juntar-se aos separatistas, particularmente se a sociedade no conjunto atravessar um período difícil.”

Revolução ou Reforma

“O que os anarquistas querem, é uma pressão constante que leve ao convencimento dos indivíduos, à formação de grupos, à reforma de instituições, ao levantamento do povo e à destruição da autoridade e da propriedade. Se isso acontecesse sem desordem, satisfaria os nossos desejos; mas nunca assim aconteceu e provavelmente nunca acontecerá. Chega o momento em que é preciso sair da casca e afrontar as forças do Estado no bairro onde vivemos, tanto mais será preciso continuar a agir, para impedir o estabelecimento de um novo Estado e para se começar a construir uma sociedade livre.”

O que fazem os anarquistas?

A primeira coisa que os anarquistas fazem , é pensar e falar. Poucas pessoas são anarquistas de nascença e é uma experiência perturbadora passar a sê-lo, que implica um considerável revolucionamento emotivo e intelectual. Um anarquista consciente está sempre numa situação difícil (mais ou menos, digamos, como um ateu na Europa medieval); é difícil transpor as barreiras do pensamento e persuadir as pessoas de que a necessidade do governo (como a existência de Deus) não é uma coisa clara em si mesma, mas que pode ser posta em questão a mesma rejeitada. Um anarquista deve elaborar completamente uma nova visão do mundo e uma nova maneira de nele agir; isso se faz em geral em conversas com pessoas que são anarquistas ou estão próximas do anarquismo, particularmente em grupos ou atividades de esquerda.”

“Um anarquismo que não transparece na vida pessoal e cotidiana não inspira verdadeiramente muita confiança.”

A Organização e a Propaganda

“A forma inicial da organização anarquista é o grupo de discussão. Se se revela viável, desenvolver-se-á em duas direções: criará ligações com outros grupos e alargará o campo de atividade.” Nicolas Walter cita como meios a serem utilizados o rádio, a televisão, o cinema, o teatro e a literatura em geral.

“Tem de se ir além da simples propaganda de duas maneiras: discutindo problemas particulares no bom momento e de maneira imediatamente eficaz, ou chamando atenção por meio de qualquer coisa mais incisiva e dramática do que as simples palavras. A primeira maneira é a agitação; a segunda, a propaganda pelo ato.”

“A agitação é o lugar onde a teoria política afronta a realidade política. A agitação anarquista é útil, a partir do momento em que as pessoas estão particularmente receptivas ao que propõe, por causa de qualquer tensão no sistema estatal: durante guerras civis ou nacionais, durante lutas industriais ou agrárias, quando de campanhas contra a opressão ou quando surgem escândalos públicos – e consiste essencialmente numa propaganda com os pés assentes na terra, realista e realizável. Numa situação em que a tomada de consciência é rápida, as pessoas não se interessam tanto por especulações teóricas gerais como por propostas específicas.”

“…a propaganda pelo ato é essencialmente de natureza não-violenta, ou pelo menos faz-se sem violência, e opõe-se mais às bombas do que as defende. (…)… reveste-se das seguintes formas: sit-downs e sit-ins, greves não controladas e não regulamentadas, ocupações, apupos organizados e manifestações selvagens. A propaganda pelo ato não é necessariamente ilegal, mas na prática é-o muitas vezes. A desobediência civil é um tipo particular de propaganda pelo ato que implica a infração aberta e deliberada das leis para atrais a atenção.”

“A agitação, sobretudo quando surte o efeito desejado, e a propaganda pelo ato, sobretudo quando é ilegal, vão muito mais longe do que a simples propaganda.”

A Ação

“Uma das tendências pessimistas mais fortes no anarquismo é o niilismo. A palavra foi criada por Turgueniev (no romance Pais e filhos) para descrever a atitude cética e de desprezo dos jovens populistas russos um século atrás, mas pôs-se a significar o ponto de vista que denega qualquer valor não só ao Estado ou à moral dominante, mas também à sociedade e à própria humanidade; para o niilista rigoroso, nada é sagrado, nem sequer ele mesmo – destarte dá um passo a mais que o egoísta convencido.

Uma forma extrema de ação inspirada pelo niilismo é o terrorismo pelo terrorismo, mais do que por vingança ou por propaganda.”

“Uma forma atenuada de ação inspirada pelo niilismo é a boêmia: (…) em vez de atacar a sociedade, o boêmio escapa dela – ainda que nela viva e a seu cargo, muito embora viva sem se conformar com os valores da dita sociedade.”

“Há outra forma de ação baseada em uma visão pessimista do futuro do anarquismo: o protesto permanente. Segundo este ponto de vista, não há nenhuma esperança de mudar a sociedade, de destruir o sistema estatal, nem de pôs o anarquismo em prática. O importante não é o futuro, a adesão estrita a um ideal determinado e a elaboração cuidadosa de uma bela utopia, mas o presente, o reconhecimento tardio de uma amarga realidade e a resistência constante a uma situação intolerável.”

“…a maior parte da atividade anarquista é vivida como uma ação de vanguarda, ou pelo menos como uma ação de pioneiros empenhados em um combate que podemos não ganhar e que pode nunca mais acabar, mas que vale sempre a pena travar.”

“…o que podemos sugerir de mais importante não é apenas que o fim não justifica os meios, mas também que os meios determinam o fim: os meios são fins, na maior parte dos casos. Podemos estar certos das nossas próprias ações, mas não das suas conseqüências.”

“Cada indivíduo é um mundo (um mundo com os seus sonhos, desejos, atrações, repulsões, recalcamentos e desinibições)… e é único… e é sempre a partir desta pluralidade de unicidades que temos de nos entender. Todo indivíduo consciente reage violentamente contra qualquer nivelamento uniformizador feito autocraticamente de cima para baixo ou à custa da sublimação individual. Sabe que não é nem mais nem menos do que qualquer outra pessoa e não precisa afirmar-se em detrimento de ninguém, nem de se anular em nome de altos valores que se levantem.”

“O individualista anarquista (…) é uma autêntica “máquina” ávida de relações imediatas com o meio ambiente onde se desenvolveu, é um belo animal sedento de relações não mediatizadas com seus afins.”

“Até o altruísta mais sincero, ao sentir prazer na felicidade honesta de outrem e ao considerar a liberdade dos outros como uma confirmação da sua liberdade, é um egoísta. O seu egoísmo, claro está, não se confunde com o egoísmo bossal do capitão de indústria que explora a mão-de-obra assalariada e diz depois que criou generosamente novos postos de trabalho, nem com o “altruísmo” farisaico do homem público que faz promessas e dá grandes palmadas no rabo do corpo eleitoral.”

Nicolas Walter cita um trecho do livro Ensaio sobre o Dom de Marcel Mauss: “Felizmente, ainda nem tudo está classificado em termos de compra e venda. As coisas ainda têm um valor de sentimento, além do valor venal, se é que há valores que sejam unicamente deste gênero. Não temos apenas uma moral de mercadores. Restam-nos pessoas e classes que ainda têm os costumes de outrora e diante deles inclinamo-nos quase todos, pelo menos em certas épocas do ano ou em certas ocasiões.” E conclui: “Por que não voltaria o Dom, construtivamente considerado e não com o caráter de dilapidação infantil do potlach, a emergir como regra informal da sociedade do futuro?

(A edição da qual retirei estes trechos é a publicada pela Editora Imaginário, da fantástica Coleção Escritos Anarquistas, co-editada pela Tesão – A Casa da Soma e pelo Nu-Sol (Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP)

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