A evolução, a revolução e o ideal anarquista – Elisée Reclus
A Revolução é o movimento infinito de tudo o que existe, a transformação incessante do Universo e de todas as suas partes desde as origens eternas e durante o infinito dos tempos.
Em Comparação com este fato primordial da evolução e da vida universal, o que são todos estes pequenos acontecimentos denominados revoluções: astronômicas, geológicas ou políticas? Vibrações quase insensíveis, aparências, poder-se-ia dizer. É por miríades e miríades que as revoluções se sucedem na evolução universal; mas, por mínimas que sejam, elas fazem parte deste movimento infinito. A Evolução, sinônimo de desenvolvimento gradual, contínuo, nas idéias e nos costumes, é apresentada como se fosse o contrário desta coisa assustadora, a Revolução, que implica mudanças mais ou menos bruscas na realidade.
Constatemos inicialmente que se faz prova de ignorância ao se imaginar, entre a evolução e a revolução, um contraste de paz e guerra, de moderação e violência. Revoluções podem realizar-se pacificamente, em conseqüência de uma mudança repentina do meio, provocando uma reviravolta nos interesses; da mesma forma, evoluções podem ser muito difíceis, intercaladas de guerras e perseguições. Se a palavra evolução é de bom grado aceita por esses mesmos que vêem os revolucionários com horror, é que não se dão conta de seu valor, pois não a desejam de forma alguma. Falam bem do progresso em termos gerais, mas rejeitam o progresso em particular. Acham que a sociedade atual, ruim como ela é, e como eles próprios comprovam, deve ser conservada; basta-lhes que ela realize o ideal deles: riqueza, poder, consideração, bem-estar. Esta sociedade dá pão, dinheiro, cargos, honrarias, pois bem, que os homens de espírito arranjem-se de modo a pegar sua parte, e a maior de todas as oferendas do destino! Se alguma boa estrela, presidindo ao nascimento deles, dispensou-os de toda luta, dando-lhes como herança o necessário e o supérfluo, de que se queixariam? Procuram persuadir-sede que todo mundo está tão satisfeito quanto eles próprios estão: para o homem saciado, todo mundo jantou muito bem. Quanto ao egoísta que a sociedade não dotou ricamente com o estado de coisas, pelo menos pode esperar conquistar seu lugar pela intriga ou pela bajulação, por um feliz golpe de sorte ou mesmo por um trabalho ardoroso posto a serviço dos poderosos. Como poderia dizer-lhe respeito a evolução social? Evoluir para a fortuna é sua única ambição! Longe de buscar a justiça para todos, basta-lhe visar o privilégio para a sua própria pessoa.
Apresentação
Sendo autodidata, Reclus desenvolve conceitos críticos que se contrapõem ao pensamento geográfico da época, comprometido com o poder, contrariando tanto os contemporâneos como os geógrafos que vieram depois dele na França, e que procuraram manter sua obra no ostracismo como sendo de pouco valor cientifico. Outro aspecto marcante foi o silêncio mantido sobre sua importante militância anarquista fora da área de influência do movimento libertário.
Estudando os múltiplos aspectos que envolvem a vida do homem sobre a terra, desenvolveu o que chamou de geografia social. Divergindo dos geógrafos identificados com o capitalismo e com os países colonialistas a atenção para a formação de uma classe ou grupo dominante local que se beneficiava e era aliada do dominador estrangeiro. Estudou as relações entre o Ocidente colonizador e o Oriente colonizado, detalhando as formas de dominação econômica, cultural, política e militar.
Analisou aspectos contraditórios do progresso que, trazendo grandes benefícios às classes privilegiadas, acarreta miséria e desolação às populações pobres e países colonizados.
Fez estudos sobre a miséria das cidades industriais que aumenta na proporção do êxodo rural. Enfocando as cidades e as grandes concentrações humanas Reclus estuda os problemas sócio-econômicos, o espaço urbano, a poluição e muitos outros problemas cruciais da atualidade.
A inclinação científica de Reclus vincula-se aos estudos que fez durante a juventude na Alemanha, sendo seus inspiradores Alexander Von Humboldt e Karl Ritter, a partir de quem, admite-se, a geografia formou-se como ciência autônoma.
Reclus deixou a marca de uma vida intensa, voltada para um ideal de superação humana em obras monumentais como a Nouvelle Géographie Universelle, com 19 volumes e L’Homme et la Terre, com 6 volumes, além de muitas monografias, artigos em jornais e revistas, conferencias etc.
Élisée Reclus nasceu em Sainte-Foy-la-Grande (perto de Bordeaux), em 15 de março de 1830. Em 1840 foi para Neuwied, na província do Reno estudar no instituto dos “Irmãos Moravi”. O diretor era uma pessoa sem caráter que bajulava os ricos e desprezava os pobres.
Em 1849, com o irmão Élie e um amigo, cursam a Universidade de Montauban. Moravam no campo, a alguns quilômetros da cidade. Pouco interessados por teologia, passavam quase todo o tempo lendo avidamente filosofia e sociologia, discutindo e usufruindo dos prazeres da natureza e, sempre eu possível, davam uma escapadinha para ver o mediterrâneo. Esse comportamento motivou sua expulsão.
Em abril de 1851, em carta para sua mãe, de Berlim, onde já se encontrava estudando, fala da decisão de não se dedicar ao sacerdócio:
“…havia durante muito tempo forjado em eu espírito o desejo de ser pastor; a simples contemplação de um púlpito me emocionava, e nunca me senti mais estranhamente feliz do que no dia em que prediquei em Montauban, diante dos professores, do meu irmão e para os assentos vazios; todavia, como sobretudo a vida de um pastor não pode fechar-se entre as quatro paredes de um púlpito, e como é preciso preencher outras formalidades mais que as de fazer sermões aos fiéis em tempos iguais e medidos, resisti a todos os méis pequenos desejos de amor próprio, e por isso digo agora, não quero, não posso, não devo ser pastor”.
“…tempos virão em que cada homem será seu próprio rei e seu próprio pastor,…entre os homens não haverá nada além de influências recíprocas, vínculos de amor; cada um falará ao seu irmão das idéias que agitam sua mente, dos sentimentos que cruzam seu coração… não haverá quem governe ou conduza seus semelhantes… mas como alcançar esse futuro se não o realizamos em nós mesmos, se descontentes recusamos todo rei ou pastor, não protestamos contra toda idéia interior que tenda a converter-nos a nós próprios naquilo que condenamos?”
Reclus já tinha formado mo núcleo de suas idéias que depois concebeu e defendeu por toda a vida. Essas idéias, embora sem as formas definitivas, tornaram-se conhecidas por um manuscrito, que remonta àquele tempo e que só foi publicado após sua morte, no qual fala em uma república universal, onde as fronteiras desaparecerão e a solidariedade se fará sem distinção de raças ou de línguas e onde os privilégios serão abolidos. No trecho seguinte é destacada a famosa frase que aparece sob os cabeçalhos de tantos jornais anarquistas:
“… o nosso fim é chegar àquele estado de perfeição ideal no qual as nações não terão mais necessidade de estar sob a tutela de um governo ou de outra nação; e a ausência de governo é a anarquia, a mais elevada expressão da ordem, aqueles que não que a terra deva um dia livrar-se de toda tutela não crêem no progresso, são reacionários.”
O texto foi publicado reunindo trabalhos juvenis de Reclus, sob título de Crescimento da Liberdade no mundo.
Em setembro de 1851, Reclus volta a Orthez, em companhia de Élie, onde foi encontrá-lo em Estrasburgo. Fizeram a viagem a pé, em companhia de um grande cão que era mais bem alimentado do que eles. Dormiam ao relento. Em dezembro, deu-se o golpe de Estado. Enquanto a maioria de Orthez procurava não se comprometer, os irmãos Reclus e alguns amigos lançaram um manifesto e fugiram para a Inglaterra. Em seguida, Élisée passou à Irlanda onde se ocupou de agricultura. Em 1853, partiu para a América do Norte. Ao chegar, exerceu várias atividades para ganhar a vida, entre elas, ativador no porto de Nova Iorque. Precisou deixar o serviço numa fábrica de conservas, onde carregava barris, por problemas físicos. Empregou-se depois como receptor numa fazenda de Nova Orleães. Favorável ao abolicionismo, decidiu transferir-se para a América do Sul, onde tenta ser agricultor. Em 1857, depois da anistia, volta à França. De 1859 a 1869 escreve artigos sobre geografia e política, em grande parte relativos à América. Colabora em várias revistas e torna-se famoso.
Em 1868, Reclus atua com destaque ao lado de Bakunin. Depois de participar do 3 Congresso Geral da Internacional, de 6 a 13 de setembro, em Bruxelas, está presente no 2 Congresso da Liga da Paz e da Liberdade, realizado em Berna, Suíça, de 21 a 25 do mesmo mês. Os irmãos Reclus, Bakunin e outros formavam um grupo sob a denominação de “fraternidade Universal” que, em reunião particular, deliberou a posição a seguir contra a maioria considerada reformista e burguesa. O confronto que vinha se acentuando desde o 1 Congresso no ano anterior explodiu plenamente em berna, provocando a resolução da minoria de separar-se da Liga. A propósito desses episódios, Élisée escreveu uma extensa carta ao seu irmão Élie:
“…Para eles, não passamos de um terrível perigo… para nós, eles não passam de débeis e frouxos… Bakunin quis retirar-se de imediato depois do resultado da votação, eu e Rey, mais pacíficos, conseguimos que ele ficasse até o fim do Congresso… 4 dia: Questão federalista: todos estavam de acordo sobre o princípio, somente eu, por minha parte, achei que era necessário dar-lhe clareza e precisão. Demonstrei, e creio que com lógica, que depois de haver destruído a velha pátria dos fanáticos, a província feudal, o departamento e os distritos, o cantão e a comuna atuais, invenção dos centralizadores a todo transe, só restava o indivíduo e que nele está o direito de associar-se como bem o entender. Aí está a justiça ideal. Portanto, no lugar das comunas e províncias, eu propus associações. Faço-te presente do discurso”.
Este discurso ficou registrado como a primeira adesão pública de Élisée Reclus aos princípios anarquistas.
Em 1870, Reclus entra para o Observatório de Aerostática, fundado por Félix Nadar, de quem se tornou grande amigo até o fim da vida. Na Guerra Franco-Prussiana, estando Paris sitiada, adere com seu irmão Élie aos revolucionários que instalam a comuna, em 18 de março de 1871. Escreve um manifesto que é publicado no jornal Lê Cri du Peuple, jornal fundado por ele, no qual ataca energicamente o governo francês. O governo, com sede em Versalhes, mantinha desde o início da insurreição parisiense a capital sitiada. Num reconhecimento feito por um destacamento das forças revolucionárias da comuna de Paris no planalto de Châtillon, Reclus foi preso junto com companheiros em 5 de abril de 1871. Conduzido a Brest, encerrado na fortaleza da cidade onde permaneceu 7 meses, animava os companheiros e dava aulas de matemática, geografia e outras ciências. Em denado à deportação para a colônia francesa da Nova Caledônia. Em dezembro de 1871, um numeroso grupo de cientistas de diversos países, entre outros Darwin, Amberly e williamson, assinaram petição ao presidente da França, Thiers. A pena foi comutada para 10 anos de exílio, sendo Reclus levado de Versalhes a Paris e à Suíça, num carro-prisão e com as mãos amarradas. Em 1872, Reclus se encontra em Lugano onde redige o famoso opúsculo “ Aos Meus Irmãos Camponeses”.
As muitas viagens e o trabalho científico não o afasta da atividade revolucionária. Assiste às reuniões da Federação do Jura, colabora no jornal Le Travailler e em Le Revolte, jornais anarquistas publicados em Genebra. Quando em 23 de dezembro de 1882, Kropotkin é preso e implicado no célebre processo de Lyon com mais 66 companheiros, a justiça acusa Élisée Reclus e Kropotkin de organizadores dos anarquistas internacionais.
Sempre houve uma relação de amizade e respeito profundo entre Reclus e Kropotkin. Tinham muito em comum: como cientistas e como anarquistas. Kropotkin colaborou com Reclus na sua grande Geografia Universal escrevendo temas sobre a Ásia. Reclus escreveu o prefácio de A Conquista do Pão, em 1892.
Em 1894 Reclus inicia seu curso de Geografia Comparada na Universidade Livre de Bruxelas, depois de muitos obstáculos face a suas idéias anarquistas e à repressão violenta dos governos em decorrência de atentados políticos da época, só então ingressando na academia, aos 64 anos de idade, embora reconhecido mundialmente como cientista, com múltiplas edições de suas obras.
Reclus escreve a Kropotkin, em 15 de fevereiro de 1905, informando que ao iniciar seu discurso na reunião de Paris para falar da Rússia e da Revolução: “…tive que sentar-me depois de falar cinco minutos, semi pontadas no coração.” Faleceu no dia 4 de julho de 1905. Paulo Reclus, seu sobrinho, escreve a kropotkin no dia 6: “… seus últimos instantes de alegria foram na segunda-feira, algumas horas antes de sua morte, ao ouvir a leitura dos telegramas da Rússia. Seu último trabalho concluído foi o prólogo de O Homem e a Terra, para a edição russa, mas até no sábado, pôde ditar algumas notas para sua obra”. O telegrama anunciava a revolta dos marinheiros do Encouraçado Potekin.
A editora Hachette, que sempre publicou e ganhou muito dinheiro com as obras de Reclus, negou-se publicar O Homem e a Terra, sob o pretexto de que suas conclusões eram anarquistas. Reclus conseguiu editá-la primeiramente em Londres (1904), e só em abril de 1905 é que começou a editar na França.
O livro A Evolução, A Revolução e o Ideal Anarquista, agora lançado no Brasil, considerando a única obra de teoria política de Reclus, segundo nota do próprio autor na edição francesa, é o desenvolvimento de um discurso pronunciado mais de 20 anos antes, em Genebra.
Estabelecendo um paralelo entre os fenômenos da natureza e as sociedades humanas, conceitua os termos evolução e revolução, denunciando os preconceitos, as visões hipócritas, tímidas e estreitas:
“…quando uma mulher, pura de sentimentos, nobre de caráter, intacta de todo escândalo perante a opinião, descer para prostituta e dizer-lhe: és minha irmã; venho aliar-me contigo para lutar contra o agente de costumes que te insulta e te maltrata, contra o médico da polícia que te manda prender e te viola com sua visita, contra a sociedade inteira eu te despreza e te espezinha: nenhum de nós se deterá em considerações gerais”.
Estudando a complexidade dos fenômenos, examina a simultaneidade do processo e do retrocesso. A falsa atribuição de progresso feita à vontade de governantes ou às leis. Analisa sob um novo prisma grandes períodos e fatos históricos: o Renascimento, a Reforma, a Revolução francesa:
“…foi em nome da liberdade, igualdade e fraternidade que todas as infâncias se praticaram. Era para emancipar o mundo que Napoleão guiava um milhão de matadores; é para fazer a felicidade das respectivas pátrias queridas que os capitalistas constituem as vastas propriedades,…organizam os poderosos monopólios que sob nova forma restabeleceram a escravatura antiga”.
Falando das revoluções palacianas, da elite e dos políticos; das revoluções instintivas e das conscientes; analisando o estado social de seu tempo e as aparentes transformações porque passava, disseca as instituições, desde a administração at a magistratura e os cultos, acentuando a necessidade de que o verdadeiro revolucionário tem de estudar e conhecer:
“…Queremos saber. Não admitimos que a ciência seja um privilégio, e que homens empoleirados sobre uma montanha de Moisés, sobre um trono como Marco Aurélio, sobre um Olimpo ou um Parnaso de cartão, ou simplesmente sobre uma poltrona acadêmica, ditem-nos leis vangloriando-se de um conhecimento superior às leis eternas. É certo que entre os que pontificaram nas alturas, há os que podem traduzir convenientemente o chinês, ler os cartulários dos tempos carlovíngios ou dissecar o aparelho digestivo de um percevejo, mas nós temos amigos que sabem fazer outro tanto e não pretendem, por tal motivo, comandar-nos. Além de tudo, a admiração que sentimos por aqueles grandes homens de modo algum impede que discutimos com toda a liberdade as palavras que, do seu firmamento, há por bem dirigir-nos. Verdade promulgada, não a aceitamos; começamos por fazê-la nossa pelo estudo e discussão, e aprendemos a rejeitar o erro, tenha ele um militar de estampilhas e alvarás”.
Reclus expõe o ideal anarquista como evolucionista e revolucionário em contraposição à ruína moral dos partidos que conquistam o poder:
“…Jovens fervorosos que faziam gestos de heróis diante da política, tornaram-se pessoas ajuizadas e tímidas em seu pedidos de reformas, depois, satisfeitos, por fim gozadores e glutões de privilégios… os socialistas, os que querem conquistar os poderes públicos, os veremos um dia operar o seu movimento de regressão normal, quando os tiverem, com efeito, conquistando. Em sendo amos, os socialistas procederão certamente, já procedem, da mesma maneira que os seus predecessores republicanos. Não se hão de curvar em seu favor as leis da história”
A educação religiosa. “…ensino confiado aos inimigos da ciência”, leva Reclus a pensar o conhecimento vivido e o conhecimento oficial, o ensino da natureza e da sociedade assim como a avaliação justa das coisas:
“… É claro que o ideal anarquista não é suprimir a escola, mas pelo contrário, engrandecê-la, fazer da própria sociedade um imenso organismo de ensino mútuo, onde todos seriam ao mesmo tempo alunos e professores, onde cada criança depois de ter recebido umas ‘luzes de tudo’ nos primeiros estudos, aprenderiam a desenvolver-se integralmente, na medida das suas forças intelectuais, na existência por ela livremente escolhida”.
Analisando o movimento operário, a Internacional dos Trabalhadores e as perspectivas de emancipação social, conclui:
“…Não nos iludimos, entretanto; sabemos que a vitória definitiva nos custara ainda muito sangue, muitas fadigas e angústias. À Internacional dos oprimidos responde uma Internacional dos opressores. Por todo o mundo se organizam sindicatos para tudo monopolizar, produtos e benefícios, para arregimentar todos os homens num imenso exército de assalariados.
Quanto melhor as consciências, que são a verdadeira força aprenderem a associar-se sem abdicar, quanto mais consciência do seu valor tiverem os trabalhadores, que são o número, mais fáceis e pacificas serão as revoluções. Finalmente toda oposição cederá e até sem luta. Chegará o dia em que a Evolução e a Revolução, sucedendo-se imediatamente, do desejo ao fato, da idéia à realização, se hão de confundir num só e mesmo fenômeno. É assim que funciona a vida num organismo são, seja ele o de um homem ou o de um mundo’.
Jaime Cubero
Abril de 1989
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A Revolução é o movimento infinito de tudo o que existe, a transformação incessante do Universo e de todas as suas partes desde as origens eternas e durante o infinito dos tempos.
Em Comparação com este fato primordial da evolução e da vida universal, o que são todos estes pequenos acontecimentos denominados revoluções: astronômicas, geológicas ou políticas? Vibrações quase insensíveis, aparências, poder-se-ia dizer. É por miríades e miríades que as revoluções se sucedem na evolução universal; mas, por mínimas que sejam, elas fazem parte deste movimento infinito. A Evolução, sinônimo de desenvolvimento gradual, contínuo, nas idéias e nos costumes, é apresentada como se fosse o contrário desta coisa assustadora, a Revolução, que implica mudanças mais ou menos bruscas na realidade.
Constatemos inicialmente que se faz prova de ignorância ao se imaginar, entre a evolução e a revolução, um contraste de paz e guerra, de moderação e violência. Revoluções podem realizar-se pacificamente, em conseqüência de uma mudança repentina do meio, provocando uma reviravolta nos interesses; da mesma forma, evoluções podem ser muito difíceis, intercaladas de guerras e perseguições. Se a palavra evolução é de bom grado aceita por esses mesmos que vêem os revolucionários com horror, é que não se dão conta de seu valor, pois não a desejam de forma alguma. Falam bem do progresso em termos gerais, mas rejeitam o progresso em particular. Acham que a sociedade atual, ruim como ela é, e como eles próprios comprovam, deve ser conservada; basta-lhes que ela realize o ideal deles: riqueza, poder, consideração, bem-estar. Esta sociedade dá pão, dinheiro, cargos, honrarias, pois bem, que os homens de espírito arranjem-se de modo a pegar sua parte, e a maior de todas as oferendas do destino! Se alguma boa estrela, presidindo ao nascimento deles, dispensou-os de toda luta, dando-lhes como herança o necessário e o supérfluo, de que se queixariam? Procuram persuadir-sede que todo mundo está tão satisfeito quanto eles próprios estão: para o homem saciado, todo mundo jantou muito bem. Quanto ao egoísta que a sociedade não dotou ricamente com o estado de coisas, pelo menos pode esperar conquistar seu lugar pela intriga ou pela bajulação, por um feliz golpe de sorte ou mesmo por um trabalho ardoroso posto a serviço dos poderosos. Como poderia dizer-lhe respeito a evolução social? Evoluir para a fortuna é sua única ambição! Longe de buscar a justiça para todos, basta-lhe visar o privilégio para a sua própria pessoa.
Há, entretanto, espíritos indecisos que crêem honestamente na evolução das idéias, que acreditam vagamente numa transformação correspondente das coisas, e que, todavia, por um sentimento de medo instintivo, quase físico, querem, pelo menos em vida, evitar toda revolução. Eles a evocam e a conjuram ao mesmo tempo: criticam a sociedade atual e sonham com a sociedade futura como se ela devesse surgir repentinamente, por um tipo de milagre, sem que o mínimo estalido de ruptura produza-se entre o mundo passado e o mundo futuro. Seres incompletos possuem apenas o desejo, sem ter a reflexão; imaginam, mas não sabem absolutamente querer. Pertencendo a dois mundos ao mesmo tempo, estão fatalmente condenados a traí-los, um e outro: na sociedade dos conservadores, são elementos de dissolução, por suas idéias e linguagem; na dos revolucionários, tornam-se por suas idéias e linguagem; na dos revolucionários, tornam-se reacionários exacerbados, abjurando seus instintos de juventude e, como o cão do qual fala o Evangelho, “retornam a seu vômito”.
Uma outra classe de evolucionistas é a das pessoas que, no conjunto das mudanças a se realizarem, vêem apenas uma única, e consagram-se estritamente, à sua realização, sem se preocupar com outras transformações sociais. Eles limitaram, registraram de antemão seu campo de trabalho. Alguns, hábeis indivíduos, quiseram, desta maneira, ficar em paz com sua consciência e trabalhar pela revolução futura sem perigo para eles mesmo. A pretexto de consagrar seus esforços a uma reforma de realização vindoura, perdem de vista por completo todo seu ideal superior e o rejeitam até mesmo com cólera, a fim de que não sejam suspeitos de compartilhá-lo. Outros, mais honestos ou completamente respeitáveis, até mesmo vagamente úteis à conclusão da grande obra, são aqueles que, com efeito, por estreiteza de espírito, só têm um único progresso em vista. A sinceridade de seu pensamento e de sua conduta situa-os acima da crítica: nós os declaramos nossos irmãos, ainda que reconhecendo com pesar o quanto é estreito o campo de luta no qual eles estão acantonados e como, por sua única e especial cólera contra um único abuso, parecem considerar justas todas as outras iniqüidades.
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Toda revolução teve seu dia seguinte. Na véspera, empurrava-se o povo ao combate, no dia seguinte, exortava-se o mesmo à moderação; na véspera, asseguravam-lhe que a insurreição é o mais sagrado dos deveres, e, no dia seguinte, pregavam-lhe que “o rei é a melhor da republicas”, ou que a perfeita devoção consiste em “colocar três meses de miséria a serviço da sociedade”, ou ainda que nenhuma arma pode substituir a cédula de voto. De revolução em revolução o curso da história assemelha-se àquele de um rio estancando de espaço em espaço por comportas. Todo governo, todo partido vencedor tenta, por sua vez, represar a correnteza para utilizá-la, à direita e à esquerda, em suas pastagens ou em seus moinhos. A esperança dos reacionários é que seja sempre assim e que o povo-ovelha deixe-se, de século em século, desviar de seu caminho, enganar por hábeis soldados, ou por advogados eloqüentes.
Para constatar o progresso, seria preciso conhecer de quanto a proporção dos homens que pensam e traçam para si uma linha de conduta, sem se preocupar com aplausos nem vaias, aumentou durante o curso da historia. Semelhante estatística é ainda impossível porque, mesmo entre os inovadores, muitos o são somente em palavras, e deixam-se levar pelo ardor dos companheiros, jovens de pensamento, que os cercam. Por outro lado, é grande o número daqueles que, por atitude, por vaidade, simulam erguer-se como rochas através dos séculos e que, entretanto, são arrastados, mudando, sem o desejar, de pensamento e linguagem. Os povos viam, outrora, os acontecimentos sucederem-se sem procurar neles uma ordem qualquer, mas eles aprendem a conhecer seu encadeamento, estudam sua inexorável lógica e começam a saber que devem igualmente seguir uma linha d conduta para recuperarem-se. A ciência social, que ensina as causas da servidão, e por conseqüência, os meios da libertação, libera-se pouco a pouco do caos das opiniões conflitantes. É nas cabeças e nos corações que as transformações devem realizar-se, antes de estender os músculos e transformar-se em fenômenos históricos. A influência do meio, moral e intelectual, exerce-se constantemente sobre a sociedade em seu conjunto, tanto sobre os homens ávidos de dominação quanto sobre a multidão resignada dos escravos voluntários, e em virtude dessa influência as oscilações que se fazem, de uma e de outra parte, dos dois lados do eixo, nunca se afastam a não ser fracamente. Se, de um lado, vemos o homem isolado subjugado à influência de toda a sociedade, com sua moral tradicional, sua religião, sua política, por outro lado, assistimos ao espetáculo do indivíduo livre que, por mais limitado que ele seja no espaço e na duração dos tempos, consegue, contudo, deixar sua marca pessoal sobre o mundo que o cerca, modificá-lo de um modo definitivo pela descoberta de uma lei, pela realização de uma obra, pela aplicação de um procedimento, algumas vezes até mesmo por uma bela frase que o universo nunca esquecerá.
A grande maioria dos homens compõem-se de indivíduos que se deixam viver sem esforço, como uma planta, e que não procuram de forma alguma reagir, seja para o bem, seja para o mal, em relação ao meio no qual mergulham como uma gota de água no oceano. Sem querer aumentar aqui o valor próprio do homem tornando consciente de suas ações e resolvido a empregar sua força no sentido de seu ideal, é certo que este homem represente todo um mundo em comparação a mil outros que vivem no torpor de uma semi-embriaguez ou no sono absoluto do pensamento e que caminham sem a mínima revolta interior nas fileiras de um exército ou uma procissão de peregrinos. Em um dado momento, a vontade de um homem pode contrapor-se ao movimento de pânico de todo um povo. Certas mortes heróicas estão entre os grandes acontecimentos da história das nações, mas quão mais importante foi o papel das existências consagradas ao bem público!
Sem dúvida, aqueles que dispõem de riqueza têm mais facilidade do que outros para estudar e instruir-se, mas possuem também mais facilidade para perverter-se e corromper-se. Um personagem adulado, como sempre o é um senhor, seja ele imperador ou chefe de escritório, corre o grande risco de ser enganado, e, em conseqüência, de nuca conhecer as coisas em suas verdadeiras proporções. Corre o risco, principalmente, de ter a vida muito fácil, de não aprender tudo dos outros; está também ameaçado de cair na canalha elegante ou mesmo imoral, de tanto que a turba dos vícios lança-se em torno dele, como um bando de chacais em torno de uma presa. E quanto mais ele se degrada, mais cresce a seus próprios olhos pelas lisonjas interesseiras; tornando bruto, pode se imaginar deus; na lama, está em plena apoteose. Fora da multidão anônima, que não procura pensar e conformar-se simplesmente à civilização costumeira, há homens instruídos e talentosos que se fazem os teóricos do conservantismo absoluto, senão do retrocesso, e que procuram manter a sociedade imóvel, fixá-la, por assim dizer, como se fosse possível parar a força de projeção de um globo lançado no espaço. Esses misoneístas, “execradores do novo”, só vêem loucos em todos os inovadores, Istoé, nos homens de pensamento e de ideal; eles cultivam o amor pela estabilidade social a ponto de indicar como criminosos políticos todos aqueles que se lançam rumo ao desconhecido; e, todavia, confessam que, quando uma nova idéia acaba se impondo ao espírito da maioria dos homens, todos devem conformar-se a ela para não se tornarem revolucionários ao se oporem ao conselho universal.
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Para combater, é preciso saber. Já não basta lançar-se furiosamente à batalha, como cimbros e teutões, berrando sob seu escudo ou em um chifre de auroque; chegou o tempo de prever, calcular as peripécias da luta, preparar cientificamente a vitória que nos dará a paz social. A primeira condição para o triunfo é nos livrarmos da ignorância; é preciso que conheçamos todos os preconceitos a destruir, todos os elementos hostis a afastar, todos os obstáculos a transpor, e, por outro lado, não ignorar nenhum dos recursos dos quais podemos dispor, nenhum dos aliados que a evolução histórica nos dá. Não aceitamos verdade promulgada: fazemo-la nossa, antes de mais nada,pelo estudo e pela discussão, e aprendemos a rejeitar o erro, tivesse ele mil selos de garantia e certificados. Quantas vezes, com efeito, o povo ignorante teve de reconhecer que seus doutos educadores não tinham outra ciência a ensinar-lhe além da de marchar pacífica e alegremente para o abatedouro, como esse boi das festas, coroado de guirlandas de papel dourado! Os diversos flagelos, econômicos ou políticos, administrativos ou militares, que grassam nas sociedades “civilizadas”- sem falar das nações selvagens – têm inumeráveis indivíduos por vítimas, e os afortunados, que são poupados ou somente tocados levemente pela infelicidade, fazem como se não se tivessem apercebido dessas hecatombes, arranjam-se do melhor para irem vivendo tranqüilamente, como se todos esses desastres não fossem realidades tangíveis! A história nos diz que toda obediência é abdicação, que toda servidão é morte antecipada; ela também nos diz que todo progresso realizou-se na proporção da liberdade dos indivíduos, da desigualdade e do acordo espontâneo dos cidadãos.
E o que dizer da instituição da “justiça”? Seus representantes, assim como os padres, gostam de se dizer infalíveis e a opinião pública, mesmo unânime, não consegue arrancar deles a reabilitação de um inocente injustamente condenado. Os magistrados odeiam o homem que sai da prisão por atirar-lhes ao rosto, com a justiça, seu infortúnio e a pesada carga da reprovação social com a qual o esmagaram monstruosidade.
O primeiro objetivo de todos os evolucionistas conscienciosos e ativos é conhecer a fundo a sociedade ambiente que eles reformam em seu pensamento. Em segundo lugar, devem buscar dar-se conta precisamente de seu ideal revolucionário. “Precisamos de pão!”. E esta frase deve ser compreendida em sua mais ampla acepção, o que dizer que é preciso reivindicar para todos os homens não somente o alimento, mas também “a alegria”, isto é, todas as satisfações materiais úteis à existência, tudo o que permite à força e à saúde físicas desenvolverem-se em sua plenitude.
Assim, os pobres habituam-se à fome. Aqueles dentre eles que são vistos agora a errar com melancolia diante dos respiradouros fumegantes das cozinhas subterrâneas, diante dos belos produtos expostos nas frutarias, nas charcutarias, nas rotisserias, são pessoas cuja hereditariedade foi a responsável pela educação: eles obedecem inconscientemente à moral da resignação, que foi verdadeira na época em que o cego destino golpeava os homens ao acaso, mas hoje não é mais válida numa sociedade de riquezas superabundantes, no meio de homens que inscrevem a palavra “Fraternidade” sobre suas muralha e não acessa, de gabar sua filantropia. Por sinal, a “justiça” atual é mais severa do que as antigas leis que concerniam ao roubo de um pedaço de pão. Viu-se nossa moderna Temis pesar um doce em sua balança e corresponder seu peso a um ano de prisão. “Sempre haverá pobres convosco!”. Esta frase, dizem saiu da boca de um Deus, e repetem-na revirando os olhos e falando do fundo da garganta para dar-lhe mais solenidade. E é porque se supunha ser esta frase divina que os pobres também, no tempo de sua pobreza intelectual, acreditam na impotência de todos os seus esforços para chegar ao bem-estar: sentindo-se perdidos neste mundo, voltavam seus olhos para o mundo do além. “Talvez, diziam –se, morremos de fome sobre esta terra de lágrimas; mas ao lado de Deus, no céu glorioso onde o halo do sol circundará nossas frontes, onde a Via Láctea será nosso tapete, não haverá necessidade de alimentos, e teremos a fruição vingadora de ouvir os alaridos do perverso rico, para sempre atormentado pela fome.” Hoje, apenas alguns infelizes ainda se conduzir por esses vaticínios, mas a maioria, tornada mais sábia, tem seus olhos voltados para o pão desta terra que gera a vida material, que faz carne e sangue, e eles querem sua parte, sabedores de que seu desejo é justificado pela riqueza superabundante da terra.
As alucinações religiosas, cuidadosamente cultivadas pelos padres interesseiros, não possuem mais o poder de desviar os famélicos, mesmo os que se dizem cristãos, da reivindicação deste pão cotidiano que se pedia ainda há pouco à benevolência caprichosa do “Pai nosso que está no Céu”. Mas a economia política, a pretensa ciência, que recebeu a herança da religião, prega por sua vez que a miséria é inevitável e que se infelizes sucumbem à fome, não pode a sociedade ser censurada por isso. Ao se ver, de um lado, a turba dos pobres famintos, do outro, alguns privilegiados comendo com voracidade e vestindo-se com extravagância, é preciso muita ingenuidade para crer que não poderia ser de outra forma. É verdade que em tempo de abundância pode-se –ia “tornar em grande quantidade” e que em tempo de penúria, todo mundo poderia se pôr de acordo para raciocinar, mas semelhante modo de agir suporia a existência de uma sociedade estreitamente unida pelo laço de solidariedade fraterna. Esse comunismo espontâneo ainda não sendo possível, faz com que o pobre ingênuo, que crê bondosamente nas palavras dos economistas sobre a insuficiência dos produtos da terra, aceite, conseqüentemente, seu infortúnio com resignação.
Toda a arte atual da repetição, tal como está, entregue ao capricho individual e à concorrência desenfreada dos especuladores e dos comerciantes, consiste em fazer elevar os preços, retirando os produtos daqueles que os obteriam por um baixo valor e entregando-os àqueles que pagam mais caro: mas nesse vaivém dos gêneros alimentícios e das mercadorias, os objetos são desperdiçados, estragam-se e das mercadorias, os objetos são desperdiçados, estragam-se e perdem-se. Os pobres esfarrapados que passam diante dos grandes depósitos o sabem. E por que os senhores economistas não começam seus manuais constatando este fato capital de estatística? E por que é que somos nós que lho ensinamos? E como explicar que os operários sem cultura, conversando após a jornada de trabalho, saibam mais sobre isso do que os professores e os alunos mais inteligentes da Escola das Ciências morais e políticas? Deve-se concluir disso que o amor pelo estudo não é, entre estes últimos, de absoluta sinceridade? Qual é esta substância alimentar indispensáveis fora o alimento material? Naturalmente a Igreja prega-nos que é a “Palavra de Deus”, e o Estado determina-nos que é a “Obediência às Leis”. Aprende, eis o crime segundo a Igreja, o crime segundo o Estado. Aprender, aí está, ao contrário, a virtude por excelência para o indivíduo livre, desligando-se de toda autoridade divina ou humana: ele rejeita igualmente aqueles que, em nome de uma “Razão suprema”, arrogam-se o direito de pensar e falar por outrem, e aqueles que, em nome da vontade do Estado, impõem leis, uma pretensa moral exterior, codificada e definitiva. Assim, o homem que quer desenvolver-se como ser moral deve defender exatamente o contrário do que lhe recomendam a Igreja e o Estado: ele deve pensar, falar, agir livremente. Estas são as condições indispensáveis de todo progresso.
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Compreende-se que um indivíduo, submetido a uma influência particular, possa estar acessível à razão ou à bondade, e que tocado por uma repentina piedade, abdique de seu poder entregue sua fortuna, feliz de reencontrar a paz e ser acolhido como irmão por aqueles que outrora oprimia sem seu conhecimento ou inconscientemente; mas como esperar semelhante ato de toda uma casta de homens ligados, uns aos outros, por uma corrente de interesses, pelas ilusões e pelas convenções profissionais, pelas amizades e pelas cumplicidades, e até mesmo pelos crimes? E quando as garras da hierarquia e o chafariz da promoção controlam o conjunto do corpo dirigente como uma massa compacta, que esperança se pode ter de vê-lo melhorar repentinamente; que bênção poderia humanizar essa casta inimiga – exército, magistratura, clero? É possível imaginar-se logicamente que um semelhante grupo possa ter acessos de virtude coletiva e ceder a outras razões senão ao medo?
Quanto caminho percorrido desde o dia em que os revoltados da véspera se tornaram os conservadores do dia seguinte! A República, como forma de poder, consolidou-se; e é na mesma proporção de sua consolidação que ela se tornou servil em tudo. Como por um movimento de relógio, tão regular quanto a marcha da sombra sobre um muro, todos esses fervorosos jovens que praticavam feitos heróicos diante dos policiais tornaram-se pessoas prudentes e temerosas em suas solicitações de reformas, em seguida satisfeitas, e, enfim, desfrutadores e glutões de privilégios. A maga Circe (1) é uma quimera esperar a Anarquia, ideal humano, possa emanar da República, forma governamental. As duas evoluções se fazem em sentido inverso, e a mudança só pode realizar-se por uma ruptura brusca, quer dizer, por uma revolução. A multidão dos lutadores sempre se compõe de dois elementos cujos interesses respectivos diferem cada vez mais. Uns abandonam a causa primitiva e outros permanecem fiéis a ela: este fato é suficiente para preparar uma nova triagem dos indivíduos, para agrupá-los de acordo com suas afinidades reais. Foi assim que vimos, há pouco, o partido republicano desdobrar-se para constituir, de um lado, a multidão dos “oportunistas”, do outro, os grupos socialistas.
1 Maga que morava em uma caverna na ilha de Lesbos e transformava os homens em porcos.
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O mundo atual se divide em dois campos: aqueles que agem de maneira a manter a desigualdade e a pobreza, isto é, a obediência e a miséria para os outros, as fruições e o poder para eles mesmo; e aqueles que reivindicam para todos o bem-estar e a livre iniciativa.
Entre esses dois campos, parece, inicialmente, que as focas são bem desiguais: os defensores da ordem social atual possuem propriedades sem limites, rendas que se contam aos milhões e bilhões, todo o poderio do Estado, com os exércitos de empregados, de soldados, de policiais, de magistrados, todo o arsenal de leis e decretos, os dogmas ditos infláveis da Igreja, a inércia do hábito nos instintos hereditários e a rotina mesquinha que quase sempre associa os vencidos servis a seus orgulhosos vencedores. E os anarquistas, os artesãos da nova sociedade, o que podem eles opor a todas essas forças organizadas? Nada, segundo parece. Sem dinheiro, sem exército, sucumbiriam, com efeito, se não representassem a evolução das idéias e dos costumes. Eles não são nada, mas têm a favor deles o movimento da iniciativa humana. Todo o passado pesa enormemente sobre eles, mas a lógica dos eventos dá-lhe razão e os faz avançar apesar das leis e dos esbirros.
O jargão oficial de nossas sociedades políticas, onde tudo se entremescla sem ordem, é de tal forma ilógico e contraditório que, em uma mesma frase, ele fala das “indescritíveis liberdades públicas” e dos “direitos sagrados de um Estado forte”; ao defender que o trabalho é a origem da fortuna, os economistas têm perfeitamente consciência de que não dizer a verdade. Tanto quanto os anarquistas, eles sabem que a riqueza é o produto, não o trabalho pessoal, mas do trabalho dos outros; eles não ignoram que os golpes na bolsa e as especulações, origem das grandes fortunas, podem justamente ser assimilados às façanhas dos salteadores; e, certamente, eles não ousariam sustentar que o indivíduo que tem um milhão para gastar por semana, isto é, exatamente a soma necessária para fazer viver cem mil pessoas, se distingue dos outros homens por uma inteligência e uma virtude cem mil vezes superior à da média. Seria mostrar-se tolo, quase cúmplice, por demorar-se a discutir os argumentos hipócritas sobre os quais se apóia esta fictícia origem da desigualdade social.
Em nenhuma das revoluções modernas vimos os privilegiados lutarem, eles próprios, suas batalhas. Sempre se apóiam em exércitos de pobres, aos quais ensinam o que se chama “a religião da bandeira”, e os educam no que se denomina “manutenção da ordem”.
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A igreja abre suas grandes portas para acolher heréticos e cismáticos: em conseqüência, ela se torna forçosamente indiferente e fraca. Ela só se pode acomodar a esse meio tão complexo e tão mutável da sociedade moderna sob a condição de não conservar mais nada de sua antiga intransigência. O dogma é considerado imutável, mas arranjam-se de modo a não ter que falar mais dele, a fazer com que o neófito ignore inclusive o Símbolo de Nicéia.
Uma prova incontestável da impotência real das igrejas é que elas não possuem mais a força para parar o movimento científico, no alto, nem a instrução, em baixo: elas só podem retardar, não suprimir, a marcha do saber; não tendo podido impedir a abertura das escolas, elas desejariam pelo menos açambarcá-las todas, tomar sua direção, ter a iniciativa da disciplina denominada instrução pública, e, em muitas regiões, obtêm êxito satisfatório.
A evolução do pensamento humano, que se realiza mais ou menos rapidamente, segundo os indivíduos, as classes e as nações, trouxe, portanto, essa situação falsa e contraditória, atribuindo a função de ensinar precisamente àqueles que por princípio devem professar o desprezo, a abstenção da ciência, limitar-se à primeira proibição formulada por seu deus: “Tu não tocarás no fruto da árvore do saber”. A prodigiosa ironia das coisas faz deles, agora, os distribuidores oficiais desses frutos venenosos. É verdade, podemos acreditar neles quando se vangloriam de distribuir essas “maçãs” do pecado com prudência e parcimônia, e fornecer ao mesmo tempo o antídoto. Para eles, há ciência e ciência, aquela que se ensina com todas as precauções desejadas, e aquela outra que se deve cuidadosamente silenciar. Tal fato, considerado moral, pode entrar na memória das crianças tal outro passou silenciosamente por ser de natureza a despertar, nos alunos espírito de revolta e de indisciplina. Compreendida desta maneira, a história não é outra coisa senão um relato mentiroso; as ciências naturais consistem em um conjunto de fatos sem coesão, sem causa, sem objetivo; em cada série de estudos as palavras ocultam as coisas, e no ensino dito superior, onde se supõe abordar os grandes problemas, se o faz sempre por vias indiretas, amontoando as anedotas, as datas e os nomes próprios, as hipóteses, os argumentos extravagantes dos sistemas contraditórios, de modo que a inteligência desorientada, entregue à confusão, retorne por fadiga ao choro dos recém-nascidos e às práticas sem objetivo. E a grande escola do mundo exterior não mostra os prodígios da indústria humana igualmente aos pobres e aos ricos, àqueles que produziram essas maravilhas com seu trabalho e àqueles que se aproveitam delas?
A visão da natureza e das obras humanas, a prática da vida, eis, portanto, os colégios onde se faz a verdadeira educação das sociedades contemporâneas. Ainda que as escolas, propriamente ditas, tenham, elas também, realizado sua evolução no sentido do verdadeiro ensinamento, elas possuem uma importância relativa, bem inferior à da vida social ambiente. É certo, o ideal dos anarquistas não é suprimir a escola, ao contrário, fazê-la crescer, fazer da própria sociedade um imenso organismo de ensinamento mútuo, onde todos seriam simultaneamente alunos e professores, onde cada criança, depois de ter recebido “noções de tudo” nos primeiros estudos, aprenderia a desenvolver-se integralmente, segundo suas forças intelectuais, na existência por ela livremente escolhida. Mas, com ou sem escolas, toda grande conquista da ciência acaba por entrar no domínio público. “Lei de bronze” (1)
1 Nome dado por Lassalle à lei que reduz, em regime capitalista, o salário do operário ao mínimo vital. (N. do T.)
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Internacional dos Trabalhadores. Comuna de Paris, coluna Vendôme.
É verdade que as armas das quais se servem os operários em sua luta de reivindicação podem parecer ridículas, e, na maioria das vezes, o são realmente. Quando se queixam de alguma injustiça gritante, quando querem manifestar sua solidariedade para com um camarada ofendido, ou então quando exigem um salário inferior ou a diminuição da jornada de trabalho, eles ameaçam os patrões dizendo que vão cruzar os braços: assim como os plebeus da república romana, abandonam o trabalho costumeiro e dirigem-se para seu “Monte Aventino”. No caso de pequenas greves, em que os interesses engajados representam apenas um pequeno capital e o amor-próprio dos poderosos barões da finança não corre o risco de ser lesado, os trabalhadores conseguem uma vitória fácil: às vezes, algum rival ambicioso sente vontade de pregar uma peça em um colega que o incomodava e indispô-lo mortalmente com seus operários. Mas, quando se trata de lutas realmente consideráveis, em que grandes capitais estão em jogo, e o espírito de corpo solicita todas as energias, a enorme diferença de recursos entre as forças em conflito não permite a pobres, que não têm senão seus músculos e seu simples direito, esperar a vitória contra uma liga de capitalistas. A estratégia deste gênero de guerra é doravante bem conhecida: os chefes de fabricas e de companhias sabem que em semelhante caso eles dispõem livremente dos capitais das sociedades similares, do exército e da turba ínfima dos miseráveis. A força das coisas, isto é, o conjunto das condições econômicas, fará certamente nascer por uma ou outra causa, em relação a algum fato sem grande importância, uma das crises que apaixonarão até mesmo os indiferentes, e veremos repentinamente brotar essa imensa energia que se acumulou no coração dos homens pelo sentimento violado da injustiça, pelos sofrimentos inexpiados, pelos ódios insaciados. Cada dia pode trazer uma catástrofe. A demissão de um operário, uma greve local, um massacre fortuito, podem ser a causa da revolução: é que o sentimento de solidariedade cresce cada vez mais e todo frêmito local tende a abalar a Humanidade. “Greve geral” por falta de adaptação ao meio, a maioria das associações comunitárias pereceu: elas ainda não tinham o laço de solidariedade perfeita que dão o respeito absoluto às pessoas, o desenvolvimento intelectual e artístico, a perspectiva de um amplo ideal incessantemente aumentado.
Entretanto, os anarquistas estudiosos e sinceros podem extrair grande ensinamento dessas inumeráveis cooperativas que surgiram em todas as partes e que agregam umas às outras, constituindo organismos cada vez mais vastos, de modo a abraçar as funções mais diversas, as da indústria, do transporte, da agricultura, da ciência, da arte e do prazer, e que se esforçam até mesmo em constituir um organismo completo para a produção, o consumo e o ritmo da vida estética. A prática cientifica do apoio mútuo dissemina-se e torna-se fácil; só lhe resta dar seu verdadeiro sentido e sua moralidade, simplificando toda essa troca de serviços, conservando somente uma simples estatística de produtos e de consumo em lugar de todos esses livros de “credito”, tornados inúteis.
“Comuna de Montreuil”. Pintores, marceneiros, jardineiros, domesticas e professoras, decidiram trabalhar simplesmente uns pelos outros, se precisar de um contador como intermediário e sem pedir conselhos ao coletor de impostos ou ao tabelião. Aquele que necessita de cadeiras ou de mesas ia buscá-las com o amigo que as fabricava; este, cuja casa não estava bem limpa, comunicava a um camarada que, no dia seguinte, trazia seu pincel e seu recipiente de pintura. Quando fazia um belo dia, vestia-se uma roupa limpa, impecável, passada pelas cidadãs, e, em seguida ia-se a passeio colher legumes frescos na horta do companheiro jardineiro, e todos os dias as crianças aprendiam a ler com a professora. Era muito bonito! Semelhante escândalo devia cessar. Felizmente, um “atentado anarquista” havia lançado o pavor entre os burgueses, e o ministro, cujo abjeto nome lembra as “convenções celebradas”, teve a idéia de oferecer aos conservadores, como presente de oferecer aos conservadores, como presente de fim de ano, um decreto de prisões e perquirições em massa. Os bravos comunistas de Montreuil passaram por tudo isso, e os maiores culpados, quer dizer, os melhores, tiveram de sofrer essa tortura disfarçada, denominada segredo de instituição. Foi assim que se matou a pequena Comuna temível; não temais, ela renascerá.
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Recordo-me, como se ainda a vivesse, de uma hora pungente de minha vida em que a amargura da derrota da derrota só era compensada pela alegria misteriosa e profunda, quase inconsciente, de ter agido segundo meu coração e minha vontade, de ter sido eu mesmo, apesar dos homens e do destino. Desde essa época, um terço de século já transcorreu. Com efeito, todos esses velhos rancores, essas tradições de antigas guerras e essas esperanças de revanche, essa ilusão de pátria, com suas fronteiras e seus policiais, e as excitações diárias dos chauvinistas de profissão, soldados ou jornalistas, tudo isso ainda nos pressagia muitos sofrimentos, mas possuímos vantagens que não nos podem roubar. Nossos inimigos sabem que perseguem uma obra funesta, nós sabemos que a nossa é boa; eles detestam-se, nós nos amamos mutuamente; eles procuram fazer historia andar para trás, nós avançamos com ela.
Assim, os grandes dias anunciam-se. A evolução está feita, a revolução não pode tardar. Por sinal, ela não se realiza constantemente sob nossos olhos, por múltiplos abalos? Quanto mais as consciências, que são a verdadeira força, aprenderem a associar-se sem abdicar, quanto mais os trabalhadores, que são a maioria, tiverem consciência de seu valor, mais as revoluções serão fáceis e pacíficas. Enfim, toda oposição deverá ceder, e até mesmo sem luta. Virá o dia em que a Evolução e a Revolução, sucedendo-se imediatamente, do desejo ao fato, da idéia à realização, confundir-se-ão num único e mesmo fenômeno. É assim que funciona a vida num organismo sadio, seja ele o de um homem ou de um mundo.
2 Comentários
Keliane
Obrigada pelo ótimo texto!
Anônimo
Valeu!!! era esse que estava procurando =D