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Introdução à uma Estética Anarco-Humanista

Por terem crescido em mundos diferentes, sofrido estímulos diferentes, raramente uma discussão entre cristãos e humanistas é proveitosa. Razão primordial para aproveitar uma oportunidade como esta proporcionada pelo Simplicíssimo em que alguns cristãos e humanistas (entremeados com um ou outro não tão convicto de sua posição) se dispuseram a encarar, com extrema sinceridade e criatividade, o tema em questão.

Começo este brevíssimo ensaio com uma visão particular de cunho humanista, inspirada em textos de H.J.Blackham, Kathleen Nott e de Kingsley Martin, constantes em uma obra chamada “Objeções ao Humanismo”. Certo da impossibilidade de extinguir a discussão sobre o assunto nas linhas que se segue, fica o convite à reflexão e ao debate do tema proposto. Segue-se o emaranhado de meus pensamentos com as idéias propostas pelos pensadores acima citados, sempre com a consciência de que somos os quatro muito mais do que a individualidade que representamos.

O Humanismo pode ser visto como uma preocupação íntima e profunda com o completo desenvolvimento da potencialidade e da personalidade humana que só pode ser a experiência de indivíduos reais. É pouco provável que existam muitas pessoas assim em cada geração. O tornar-se humano dependem de um discernimento e visão imaginativa – artística, filosófica, pessoal e de relação – que devem ser excepcionais para sua plena realização.

Como diz H. J. Blackham, talvez a nota característica do Humanismo seja um materialismo altruístico, terreno e apaixonado.

O humanismo aspira ser simples com os mais simples e a ser mais filosófico do que as escolas e mais religioso do que as seitas e mais político do que os políticos.

Fé sem obras não é Cristianismo e o ateísmo que não faz esforço algum para ajudar a humanidade a arcar com suas conseqüências não é Humanismo.

Se alguém desperta de um sentido de ilimitada dependência para uma suposta independência ao invés de para uma ilimitada interdependência está operando uma troca de ilusões, para pior.

A responsabilidade ilimitada e compartilhada na criação das condições de toda uma vida merece ser chamada de humana, eis o colossal empreendimento a ser assumido pelo homem sem Deus.

Os filósofos, inevitavelmente, são cerebrais e na atualidade com freqüência agnósticos. O mesmo acontece com os cientistas. No entanto, não apenas os filósofos e os cientistas mas também os matemáticos têm um interesse real e penetrante pelas artes. Em alguns, este interesse justifica uma necessidade terapêutica mas, também, pode ser nada mais que o reconhecimento de que toda a inteligência humana deve aprender a se equilibrar.

Somos ainda, em grande parte, como humanidade, altamente desaparelhados para satisfazer a um desenvolvimento satisfatório equilibrado e harmonioso entre lógica e análise de um lado e imaginação e intuição de outro, em uma só mente e personalidade.

O que propomos aqui é um exercício de pensar. Sabemos que para a grande maioridade das pessoas o pensamento é um esforço doloroso e preferem passar sem experimentar. Se for o seu caso, para a leitura neste ponto.

Não estou atribuindo nenhuma superioridade àquele seleto e estranho bando de pessoas que tem uma inclinação para o raciocínio abstrato quando digo que, neste sentido, a maioria das pessoas não pensa. Em um sentido prático, obviamente, todos pensamos quando temos que resolver este ou aquele problema, mas não é disso que falaremos.

A linguagem dos homens e das mulheres comuns é muito mais parecida à dos poetas ou mesmo à dos namorados do que à dos filósofos. Estão sempre dizendo “o que eu gosto, o que me desagrada, o que me interessa, o que me aborrece”. Dizer o que se vê pela janela do ego é construir uma ponte entre um suposto mundo interior e o exterior. Dizer é presumir que há, em um mundo externo, algo sobre o quê algo possa ser dito. Significa uma fé animal sobre a existência do mundo e das coisas.

O problema histórico do Humanismo foi negar esta fé essencial materialista e aceitar, durante algum tempo, o racionalismo radical de alguns filósofos e outros intelectuais ocidentais. Deixou de acreditar em tudo aquilo no qual não se via a razão.

Hoje, minha crença se baseia no fato de que, ser analítico demais, pedir explicações, razões e justificações morais e lógicas pode acabar por destruir as relações humanas. Entretanto, não há como negar que, tanto entre os racionalistas quanto entre os religiosos uma certa ânsia por uma certeza final caracteriza a todos.

O problema pode estar justamente no fato de que se criou uma polarização do tipo “ou isto ou aquilo” em que ambos lados polemizadores tentam achar provas de que a sua verdade é a verdadeira. Cria-se uma guerra em que, na realidade, a verdade é a primeira vítima.

Pensar ou raciocinar é aprender a ver o que tem para ser visto. Isto implica em aprender a ver por si próprio e sustentar e arcar com a responsabilidade das conclusões tiradas. Isto não significa que uma pessoa tem que ter “razão”. Existe um padrão de pensamento que é válido aos seres humanos que se preocupam com suas próprias vidas qualquer que seja ela em um determinado momento. Pensamos corretamente quando pensamos com uma finalidade real em um campo real. Este parece ser o único método de realizar uma adaptação criadora ou uma fecunda transformação em nosso meio-ambiente – que aqui podemos chamar de Progresso, em um sentido amplo.

Acontece que, justamente esta ênfase na capacidade da ciência como criadora de progresso tornou-se alvo de crítica aos combatentes do Humanismo oitocentista, já que, ao que parece, por onde quer que se olhe, o evangelho do progresso nos está conduzindo não à Utopia prometida mas a uma maior miséria social e até quem sabe – já se falou mais sobre isso – a uma solução final através de uma guerra nuclear.

Essa visão humanista é, hoje, obsoleta. Continua-se a ter o direito de pretender que o Humanismo possa apresentar o caminho para uma sociedade melhor e para formar melhores seres humanos, desde que não comenta o erro de prometer ilimitados desenvolvimento e progresso ininterrupto – mais característicos hoje de uma ciência irracional e sem rumos definidos.

É importante perceber também que vivemos em um mundo dividido em que a elite instruída rejeita a religião revelada pois a mesma carece de verdades objetivas. Pode-se dizer até que, entre cardeais, bispos, ministros e governantes que pregam a fé que se empenham em manter através da propaganda, da censura e do controle através da educação não existe mais a crença absoluta no que é pregado, exceto talvez ainda sob um aspecto simbólico.

A fé humanista consiste em que a razão pode desempenhar um papel decisivo e que as doutrinas religiosas podem ser, na maior parte, obstrutivas. Vide o exemplo do Oriente Médio e das contínuas guerras santas entre judeus e palestinos.

Tornou-se um dever, e não apenas uma linha sensata de conduta, trabalhar em prol de uma sociedade universal. O futuro depende de nós e não de qualquer doutrina. Devemos acreditar que os homens progridem não para a Utopia ou para a perfeição e sim para uma sociedade mais feliz e mais razoável.

Este ensaio tem a notável pretensão de, utilizando críticas ao Humanismo, mostrar quem sabe, uma visão alternativa às críticas feitas. Uma das mais drásticas críticas feitas ao Humanismo é a de que ele é ruim demais para ser verdade. O mundo é uma vasta tumba, as vidas humanas são efêmeras e a própria vida humana está fadada à extinção final . Todas as religiões evoluídas fazem frontal oposição a tudo isto, dizendo “o eterno apenas”, “o temporal redimido pelo eterno”, nunca “o temporal apenas”.

Nas palavras de Bertrand Russel, ateu de carteirinha: “O Homem é o produto de causas cujas finalidades a alcançar não são previsíveis; a origem, o desenvolvimento, esperanças e temores, amores e crenças humanas nada mais são do que uma acidental disposição dos átomos; nem o ardor, o heroísmo ou um pensamento ou emoção intensos pode preservar a vida individual além do túmulo; todo o trabalho das gerações, toda a inspiração, todo o resplendor do gênio humano está destinado à extinção na vasta morte do sistema solar e todo o templo das realizações do Homem deverá ser, inevitavelmente, sepultado sob os escombros de um universo em ruínas”.

Explica-se através de uma metáfora, que o Humanismo veria a vida como uma ponte sobre um desfiladeiro que se estende apenas até a metade da distância e acaba no ar. Esta ponte estaria abarrotada de seres humanos que se empurram um após o outro caindo no abismo. Não importa que, ao subir na ponte, eles pensem que estão indo a alguma parte, nem os preparativos para a viagem que possam ter feito, nem o quanto possam apreciá-la. A visão resultante desta crítica representa a vida como um modelo de futilidade.

Tal exemplo se presta a uma interessante perspectiva, que é a que pessoalmente levo comigo há algum tempo, que chamo de Mudança Radical da Imortalidade, e serve de crítica à crítica acima apresentada.

A busca da imortalidade cristão se dá através da crença na permanência da individualidade da alma em um paraíso além, prometido pela religião revelada através das Sagradas Escrituras.

Não sei bem ao certo quando, mas meu coração rejeitou e deixou de aceitar esta crença há um bom tempo atrás. Ao mesmo tempo em que esta crença foi destruída, surgiu em seu lugar uma outra, mistura de vários estímulos recebidos em essência de leituras e experiências pessoais, em que a noção de individualidade foi deixando lugar para a noção de impermanência e de União e interdependência constante com o Universo, características da crença budista. Como não pratico os hábitos, não posso me considerar nem de longe um budista.

Mas, voltando à minha noção de Imortalidade, acredito que devemos mudar o foco de nossa preocupação de enfrentar nossa extinção e de um desejo desesperado de reencontrar aqueles que perdemos para uma preocupação em como levar nossos filhos e sucessores a terem uma vida mais feliz aqui, nesta existência, aprendendo (e ensinando) a praticar as leis do bem-estar.

Uma vez que tenhamos aceito o fato de que o mundo aqui pe como nós o fazemos, nosso problema se transformará em um problema de comportamento humano, passaremos a viver com uma preocupação ecológica, nos tornaremos verdadeiros humanistas e poderemos deixar de lado as crenças religiosas de busca após a Morte de uma religação a uma entidade superior, tendo em vista que já estamos ligados a esta entidade superior que é a própria Natureza em toda sua imponência e majestade, em todas suas instâncias físicas, químicas e transcendentais.

De qualquer maneira, não sabemos ainda o quanto podemos mudar da natureza humana, mas temos muitas evidências de como podemos mudar o comportamento humano para melhor, mesmo se o processo for menos simples e depender de menos melhorias óbvias na situação física do que imaginávamos há tempos atrás. Este é o limiar para um novo conhecimento. O futuro da humanidade depende mais do nosso conhecimento da mente humana do que do sucesso que podemos ter com as viagens espaciais ou quem sabe até em atingir as estrelas longínquas.

A fé cristã tenta evidenciar como seu principal mote, uma finalidade cósmica para a individualidade humana. A promessa da vida no além como justificativa para o bom comportamento na vida terrena. Qualquer tipo de moral ou ética sem esta finalidade cósmica não poderia se manter e se perpetuar através das gerações.

O Humanismo propõe um desafio que resolvi aceitar. Proponho aqui a valorização das finalidades individuais e coletivas como um fim em si mesmas. A Vida como fim da Vida ao contrário da Morte como fim da Vida, como quer o cristianismo.

Se assim for, não é a reflexão sobre a experiência mas a experiência em si o fim último da Vida. E, chegando a essa conclusão, nos damos conta de que, viver é, na realidade, um churrasco com os amigos no fim-de-semana, onde se contam piadas e nos divertimos, em um mundo sensual e finito. Mas não só isto: é necessária a percepção consciente destes fatos, que muda totalmente nossa vivência de uma simples rotina de repetição animal das ocorrências do dia-a-dia para uma vivência baseada em escolhas verdadeiras e tranqüilas do nosso próprio destino.

Com a percepção de que sou autor de minha própria existência, vivendo em uma dimensão individualmente mortal, esta experiência (a Vida) pode tanto ser um relato triste e trivial do que acontece comigo ou pode ser uma experiência que valha a pena ser compartilhada por outros, através da arte, ciência, política ou qualquer atividade que eu escolha exercer.

O Humanismo é justamente a aspiração a aumentar esta confiança enraizada nos recursos disponíveis e criar uma arte atingível e, desta forma, reduzir a inutilidade das vidas individuais e torná-las a essência de um mundo pleno e verdadeiramente humano, como jamais existiu.

Rafael Reinehr é médico endocrinologista, anarquista, escritor, permacultor, ativista oikos-socio-ambiental e polímata ma non troppo.

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