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Quase Filosofia

Apontamentos para Depois do Futuro

Estamos presenciando um momento da história em que a sociedade caminha para um estado de destruição da ordem social vigente.

Estamos caminhando por um momento da história no qual a sociedade começa a não mais resistir aos efeitos destrutivos do capitalismo sem limites, nos quais esta sociedade já se despedaça cada vez mais em decorrência do poder devastador do acúmulo financeiro.

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Aqui e acolá, como sempre foi, existem movimentos de resistência a este “estado das coisas”. Indivíduos, coletivos, redes e movimentos se articulam, cada qual com suas agendas e interesses, para combater o espetáculo da máquina capitalista. São anti-racistas, anti-sexistas, anti-capitalistas, anti-…

Entretanto, a resistência ainda está limitada pela sua falta de autonomia. Em parte, pois esta autonomia queda-se atrelada aos vínculos com este mesmo sistema capitalista, na qual as instâncias de resistência buscam seus recursos para a luta e o enfrentamento. Elas não conseguem suprir, sozinhas, as necessidades básicas para a vida em sua estreita rede especializada. Não se criaram, ainda, comunicações em frequência e intensidade significativas entre grupos e comunidades de resistência.

Do ponto de vista estratégico, enfrentar o poder com violência parece ser algo suicida nos dias de hoje. E sem sentido. Como podemos pensar em enfrentar organizações ungidas e patrocinadas por todas as forças instituídas da sociedade e que, ainda por cima, contam com o apoio quase irrestrito da população alienada em geral?

Talvez, o desaparecimento seja uma tática a ser melhor planejada e utilizada. Mas desaparecimento não como fuga para um local idílico, mas sim como estratégia de luta e enfrentamento. Um enfrentamento através da não aceitação das formas capitalistas de existir e conviver.

O desaparecimento do sistema estabelecido através da criação de viveres e sentires que quebrem completamente o paradigma de opressão, dependência e escassez do livre mercado, substituído por um outro sistema no qual a economia se pauta por uma nova ética e seja mais transparente, valorize o planeta e seja mais inclusiva, valorizando os demais seres, respeitando e mantendo a biodiversidade da Natureza.

Um dos primeiros passos é reconhecer a irreversibilidade das tendências catastróficas que o capitalismo inscreveu na história da sociedade humana. Mas isto feito, não significa que devamos abandonar o barco. Ao contrário: estamos, nós, imbuídos de uma tarefa cultural e geracional imensa, que é o de viver o inevitável com uma alma serena. Devemos conclamar uma grande onda de retirada, de dissociação massiva, de deserção da cena da economia, de não participação do falso show da política.

O foco mais essencial dessa transformação social e cultural será a singularidade criativa, uma força oriunda do desejo de alguns que, a partir do contágio, se tornará uma força imparável para a mudança.

Para nos certificarmos de que a resistência e nossa tarefa cultural está nos guiando pelo caminho certo, basta nos recordarmos da catástrofe ecológica iminente, das ameaças geopolíticas, das guerras pelo petróleo, dos colapsos econômicos causados pelas políticas financeiras neoliberais, o dinheiro de fumaça do sistema monetário atual e da paralisia política e judiciária frente ao poder econômico da classe mandante e criminosa.

A conquista de formas de exercer a autonomia no aqui e agora é um passo essencial para, em primeiro lugar, fornecer a sustentabilidade das ações que se deseja e, em segundo lugar, para o avanço e potencialização destas.

Ao mesmo tempo em que é fácil prever, para os próximos anos, uma série de insurgências civis aparecendo, aqui e acolá, em função do difícil acesso à água, o alto preço dos alimentos, o elevado custo dos combustíveis, da habitação e da energia, taxas crescentes de desemprego ou subemprego, violência e repressão crescentes e restrição de liberdades individuais em um modelo neofascista de governança global, não consigo visualizar uma resistência suficientemente organizada que consiga fazer frente a toda esta gama de problemas causados pelo próprio metabolismo capitalista.

Os mais abastados continuarão, com o poder econômico que detém, controlado as forças instituídas de poder e através de cadeias incontáveis de títeres, manipulando até o mais singelo funcionário da limpeza pública. A militarização dos espaços públicos, dos grandes centros de poder, a vigilância e a sociedade de controle que se vem gradual e subrepticiamente se estabelecendo, não permitirão que pequenos grupos de insurgentes consigam modificar qualquer coisa muito além da superfície e daquilo que, para contentamento da mídia e da sociedade do espetáculo, se desejar fazer aparecer.

Depois do Futuro, o que nos espera é a criação de Zonas Autônomas Permanentes, espaços de transição pacíficos e ao mesmo tempo altamente revolucionários, que carregarão consigo não somente o gérmen mas toda a mudança que se propõe. Serão espaços vivos, a cores e ao ar livre de experimentação social. Espaços como este já pipocam em vários cantos, mas ainda não se articularam de forma eficiente nem se enraizaram na cultura e na consciência de uma rede de resistência emergente.

Importante observar que, enquanto o processo de produção de singularidades criativas (desaparecimento da sociedade capitalista e formação de Zonas Autônomas Permanentes) será um processo pacífico, as reações da maioria conformista serão violentas. A percepção de que energias inteligentes e de poder criativo e harmônico estão escapando gera, paradoxalmente, um ataque a estas mesmas forças que se expressam através do compartilhamento da inteligência e do conhecimento ao invés da apreensão e comercialização deste. Movimentos pela restrição das liberdades na internet, acirramento das leis de direitos intelectuais e punições mais severas a quem acredita em mídias livres e acesso irrestrito à produção científica e cultural são espasmos agônicos de uma sociedade que teima em tapar seus ouvidos e fechar seus olhos ao espírito do tempo.

A despeito da imprevisibilidade deste processo de criação de espaços de vivências mais justas, equânimes, conviviais, libertárias, horizontais, autônomas e resilientes em meio a uma sociedade opressora, hierárquica, reguladora e normalizadora, sabemos que precisamos, quando possível, fugir do confronto direto com a classe criminosa e a população conformista, criar zonas humanas de resistência, de singularidade criativa, experimentar com formas autônomas de produção utilizando métodos de produção tecnológicos de baixa energia e eficientes ambientalmente e disseminar tecnologias apropriadas e tecnologias de cooperação, que permitam uma aceleração de novas formas de consciência coletivas e em rede.

Enquanto as pessoas gradativamente se tornarem mais desesperançosas, deprimidas, assustadas e impotentes pelo fato de não conseguirem lidar com a economia pós-crescimento e suas consequências, nossa tarefa cultural será atender a estas pessoas, oferecendo um alívio para sua insanidade, mostrando-as o caminho para uma adaptação feliz. Nossa tarefa será a criação de zonas de resistência humana que funcionem como zonas de contágio terapêutico. O desenvolvimento da autonomia não busca destruir e abolir o passado. Como na terapia psicanalítica, as Oficinas de Criação de Autonomia (OCAs) deverão ser consideradas um processo sem fim.

(Inspirado e adaptado do texto “I think that is time to ask”, de Franco Bifo Berardi – lido em Adbusters #100)

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