O Anarquismo e suas Aspirações - germinando
Apontamentos Anarquistas

O Anarquismo e suas Aspirações – parte VIII

Consolidar a Liberdade

“Nós podemos não ver os desfechos
Embora possamos ver as pistas
Mas quando você planta uma semente
Ela deve crescer antes de desabrochar” 
– Ryan Harvey, “Ain’t Gonna Come Today” – 2006

     Os últimos quarenta ou mais anos desembocaram em uma nova era, por alguns chamada de sociedade em rede, idade da informação ou simplesmente globalização. Ao mesmo tempo em que as transformações no capitalismo, nos estados-nação, tecnologia e cultura abrem novas possibilidades, também são causa pra graves preocupações. Agora o Capitalismo está se tornando “verde”; as redes sociais e as tecnologias de comunicação reduzem cada vez mais os laços humanos; as democracias representativas oferecem relações públicas ao invés de redes de segurança, além de monitorização constante e total e neotorturas.

     A exacerbação da sensação de insegurança é agora a forma principal de pequenas redes da elite global buscam, para exercer diferentes formas de controle social após os eventos de Seattle em 1999 e os “atentados” de 2001 às torres gêmeas em Nova Iorque.

     Para muitos fora dessas redes, isso involve viver no fogo cruzado das ocupações, guerras civis e sofrer de grande restrição devido a crises ecológicas e econômicas. A noção de cidadãos protegidos por um estado agora parece antiquada, já que milhões de refugiados e excluídos do sistema (educacional, de saúde, de segurança) vivem em espaço de precariedade e ilegalidade. Para a maioria das pessoas, a vida diária é uma fonte de ansiedade, não apenas material mas também em termos de clara desumanização.

     Em contraste, o anarquismo reemergiu como uma das mais potentes correntes dentro dos atuais milieus radicais. Uma variedade de movimentos antiautoritários pipocaram mundo afora nas últimas duas décadas, mas o anarquismo parece ser a única forma de socialismo libertário que fala ao tempo e aos sonhos das pessoas. Aliás, o anarquismo pode muito bem ter estado além do seu tempo no século XIX, defendendo um mundo de identidades transnacionais e multidimensionais, em lugar por um humanismo substancial baseado no mutualismo e na diferenciação. Os valores anarquistas são estranhamente similares a muitas das mudanças estruturais acontecidas sob a globalização – como a descentralização e a cooperação – tornando-as mais práticas e potencialmente mais atraentes do que nunca. O estado, preocupação primária do anarquismo de longa data, ao lado do capitalismo, também foi para sempre alterado, se não totalmente minado. Parece não mais deter o monopólio da violência, nem pode mais oferecer o suficiente bem-estar social de modo a garantir a passividade de parte de seu eleitorado, e isso oferece novas aberturas para o mutualismo e a auto-governança.

     À medida em que a globalização progressivamente permite que a homogeneidade e a heterogeneidade coexistam, mesmo que frequentemente somente para fins instrumentais, os esforços em andamento do anarquismo para construir uma unidade em nossa diversidade mais do que nunca sugerem uma práxis revolucionária.

     Esse pode muito bem ser lembrando como o “século anarquista”, como David Graeber e Andrej Grubacic afirmam. O número de pessoas se identificando com o anarquismo tem crescido espontaneamente no passado recente. Como os camaradas dos dias que passaram, esses novos anarquistas tem estado ocupados tentando prefigurar seus ideais. Uma melhor sociedade pode ser pré-visualizada em produções culturais (e sociais)  do tipo “faça você mesmo”, inclusive formas organizacionais, infraestruturas autônomas mas ainda assim enredadas, e nas numerosas formas de de-comodificar as necessidades e os desejos. O anarquismo do século XXI tem se mostrado crescentemente dinâmico e expansivo. Mais e mais escolas tem se juntado ao adjetivo “anarquista” para amplificar a totalidade do indivíduo e da sociedade – de anarquistas negros a anarquistas tecnológicos (ou ciberanarquistas), de anarquistas pós-estruturalistas a anarquistas gays, e aqueles concentrando-se em questões previamente ignoradas dentro do anarquismo como a saúde mental. As pessoas estão chegando ao anarquismo de outras tradições, reformatando-o no processo. Anarquistas são abertos a, aliados a, e criticamente solidários com – e buscam aprender de – toda sorte de movimentos de base do mundo. Eles são, mais do que nunca, formas práticas de auto-organização nos níveis micro, continental e global. Mais importante talvez, as formas de relação social anarquista se tornaram a posição “suave”, alógica implícita e frequentemente não  creditada, dentro dos movimentos radicais e progressivos globalmente.

     Eu concentrei aqui no que o anarquismo luta por na forma de suas mais amplas e ambiciosas visões, afirmando que tão belas aspirações servem como uma consciência necessária em um mundo crescentemente inconsciente. Eu argumentei que mesmo que o anarquismo fosse apenas uma sensibilidade ética, a ideia de uma liberdade expansiva pode algumas vezes ser o suficiente para determinar a forma que as pessoas, anarquistas ou não, tentam constituir a liberdade na prática. Felizmente, quando tudo está dito e feito, o anarquismo é esta grande mas ainda assim modesta crença, abraçada por pessoas através da história humana, de que nós podemos imaginar e também implementar uma sociedade totalmente maravilhosa e materialmente abundante. Esse é o espírito do Anarquismo, o fantasma que assombra a humanidade: de que nossas vidas e comunidades realmente podem ser apreciavelmente melhor. E melhor, e então ainda melhor.

 Capítulo 2 – A Promessa Anarquista para uma Resistência Anticapitalista

     Esta política radical de resistência e reconstrução a qual chamamos Anarquismo tem transformado a si mesma por décadas. Além de ajudar a dar forma ao atual movimento anticapitalista, ele também ilumina os princípios de liberdade que podem potencialmente deslocar a hegemonia da democracia representativa e o capitalismo.

     Desde seu início no século XIX, o Anarquismo sempre sustentou uma série de noções éticas que, defende, melhor nos aproxima de uma sociedade livre. Durante sua vida, o anarquista Errico Malatesta (1853-1932) há muito tempo descreveu o Anarquismo como uma “forma de vida social na qual os homens vivem como irmãos, onde ninguém está em posição de oprimir ou explorar ninguém, e na qual todas as formas de atingir o máximo de desenvolvimento moral e material estão disponíveis a todos“. Essa simples definição ainda captura os principais objetivos do Anarquismo. Se esta forma libertária de socialismo pode atender ao seu próprias aspirações ainda está por ser visto.

                    A Visão Tornada Invisível

     Enquanto as formas de organização e valores desenvolvidos pelos anarquistas podem ser encontrados de forma embrionária ao redor do mundo em muitas diferentes épocas, a estréia do anarquismo como uma filosofia distinta aconteceu na Europa no meio do século XIX. O “filósofo da liberdade” inglês William Godwin (1756-1836) foi o primeiro pensador do Iluminismo a escrever uma teoria sustentada da sociedade sem Estados em seu An Inquiry concerning Politic Justice em 1793, mas não foi até Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865) escrever “a sociedade busca a ordem na anarquia” em seu “O que é a Propriedade?” em 1840, que o termo “anarquismo” lentamente começou a se organizar nas próximas várias décadas em torno de um núcleo central de princípios reconhecíveis.

     Muitas críticas podem ser feitas a Godwin e a Proudhon, este último com sua incapacidade em  lidar com a lógica inerente ao capitalismo e suas crenças patriarcais e anti-semíticas. De fato, foi necessário que o aristocrata russo Piotr Kropotkin (1842-1921) e o intelectual judeu alemão Gustav Landauer (1870-1919) e muitos outros menos proeminentes e menos conhecidos radicais pintassem um quadro mais agradável do anarquismo clássico: uma filosofia política utópica que negue todas as formas de autoridade e coerção imposta.

     Como socialistas, os anarquistas sempre foram particularmente preocupados com o capitalismo, que durante a Revolução Industrial estava causando sofrimento em uma escala inimaginável. Anarquistas primariamente colocaram suas esperanças em transformar as relações sociais entre os trabalhadores, utilizando categorias econômicas que iam desde a luta de classes até o fim da propriedade privada. Toda esquerda revolucionária concordava que o capitalismo não podia ser reformado;  ele deveria ser abolido. Mas ao contrário de outros socialistas, os anarquistas sentiam que o estado era tão culpado quanto em escravizar a humanidade, e assim não se poderia usar a máquina do estado – mesmo de uma forma transitória – para nos movermos do capitalismo para o socialismo.

     Como o anarco-sindicalista Rudolf Rocker (1873-1958) proclamou em 1938, “O socialismo será livre, ou não será”.  Por esta razão e outras, o anarquismo evoluiu do socialismo para indicar uma oposição não somente ao capitalismo mas também aos estados e outras instituições compulsórias interligadas, como a religião organizada, a escola mandatória, o serviço militar e o casamento. Por isso é dito sobre o anarquismo em um senso mais geral que “todos anarquistas são socialistas, mas nem todos socialista são anarquistas”. Ou, como Joseph A. Labadie colocou, “O Anarquisto é um Socialismo voluntário. Existem dois tipos de Socialismo… autoritário e libertário, estatal e livre”.

     Ao invés de organizações sociais de cima para baixo, os anarquistas desenvolveram vários tipos de modelos horizontais que podem prefigurar a boa sociedade no presente. Ou seja, os anarquistas mantém que as pessoas podem tentar construir um mundo novo na casca do velho através de auto-organização ao invés de passivamente esperar até um período pós-revolucionário. Daí a ênfase anarquista na práxis. As alternativas anarquistas eram enraizadas em conceitos-chave tais como associação voluntária, liberdade pessoal e social, comunidades descentralizadas e confederadas, igualdade de condições, solidariedade humana e espontaneidade. As experiências anarquistas pelo mundo nos mostraram a criação de federações, vida comunal, escolas livres, conselhos de trabalhadores, moedas locais e sociedades de apoio mútuo.

     O Anarquismo foi parte de uma grande esquerda internacionalista  desde 1880 até a Ameaça Vermelha dos anos 20 e a Revolução Espanhola de 1936. Então, desacreditados, desencantados ou mortos, os anarquistas pareceram desaparecer e, com eles, a filosofia em si. Após a Segunda Guerra Mundial e a derrota do nazismo, pareceu que as duas escolhas políticas eram “democracia” (capitalismo de livre mercado) ou “comunismo” (capitalismo de estado). Perdidos na equação, entre outras coisas, estavam o questionamento da autoridade e a asserção concorrente da utopia trazida pelo anarquismo.

                    Reemergência como Convergência

     Quando o Anarquismo começou a ser redescoberto na década de 50 pelos esquerdistas procurando uma alternativa ao marxismo ortodoxo, ele então tentou fortemente refazer-se a si mesmo. Os pensadores anarquistas se ocuparam com novas preocupações, que iam desde o consumo compulsivo até a urbanização; novas possibilidades como o feminismo e a liberação cultural; e velhos fantasmas como uma orientação voltada ao trabalho e táticas antiautoritárias e, até, terroristas. O Anarquismo renovado que finalmente emergiu era, de fato, uma convergência de vários impulsos antiautoritários do pós-guerra. Apesar de que a sensibilidade libertária dos anos 60 e a Nova Esquerda estarem na base, cinco fenômenos são especialmente cruciais à práxis que se tornou famosa em Seattle.

     Primeiro, houve a Internacional Situacionista (1962-1972), um pequeno grupo de intelectuais e artistas avant-farge que tentaram descrever um capitalismo em transição. De acordo com os Situacionistas, a alienação básica à produção capitalista que Karl Marx observou agora preenchia cada orifício; as pessoas não estavam mais alienadas só em relação aos bens que produziam, mas também suas próprias vidas, seus próprios desejos. A forma comodificada agora colonizava também a esfera da vida cotidiana. Como Guy Debord (1931-1994) escreveu, o capitalismo moderno forjou uma “sociedade do espetáculo”, ou sociedade do consumo que prometia uma satisfação ainda nunca entregue, tendo a nós como expectadores passivos. Os Situacionistas defendiam disrupções práticas do cotidiano, desde a mídia até a paisagem das cidades, de forma a fragmentar o espetáculo através da imaginação e substituir a drogadição com prazer.

     Dos anos 70 em diante, os trabalhos interdisciplinares do teórico Murray Bookchin (1921-2006) também ajudaram a transformar o Anarquismo em uma teoria política moderna. Aproximando a velha e a nova esquerdas, Bookchin fez mais do que qualquer um ampliando a crítica antiestatista/anticapitalista do anarquismo a uma crítica da hieraquia por si. Ele também trouxe a ecologia como preocupação ao anarquismo, por conectá-la à dominação. Em uma sentença, parafraseando-o, a crise ecológica é uma crise social. Bookchin enfatizou a possibilidade nascente no presente de uma sociedade ecológica pós-escassez, na qual o uso “racional” da tecnologia, poderia livrar a humanidade para preencher sua potencialidade em harmonia com o mundo natural. De forma mais significante, ele mandou embora a necessidade de um estado e o substituiu por uma forma de auto-governo democraticamente direto, chamado de “municipalismo libertário”. Os escritos de Bookchin apontavam para a cidade ou vizinhança como o local do enfrentamento, radicalização, poder dual e finalmente revolução, com confederações de assembleias de cidadãos livres substituindo o estado e o capital.

     Emergindo da contracultura rural na Nova Inglaterra e então ca Costa Oeste – uma contracultura que incluia pacifistas radicais tanto de origem anarquista quanto religiosa – o movimento antinuclear dos anos 70 e 80 dos Estados Unidos usou a desobediência civil, mas infundida com uma sensibilidade anarquista e feminista: uma rejeição de toda a hierarquia, uma preferência por um processo democrático direto, um foco na espontaneidade e na criatividade. Níveis variáveis de confronto não violento nas plantas nucleares, desde bloqueios até ocupações, além do uso de bonecos e solidariedade nas prisões foram decididas nos grupos de afinidades e nos conselhos.

     Iniciando nos anos 80, os Autonomen da Alemanha Ocidental deixaram uma marca no anarquismo também. Os Autonomen rejeitavam tudo desde o sistema existente até todos os rótulos ideológicos, inclusive o de anarquistas. Como uma rede espontânea, descentralizada de revolucionários antiautoritários, eles eram autônomos de partidos políticos e sindicatos; eles também tentavam ser autônomos de estruturas e atitudes impostas “de fora”. Isso levava em conta uma estratégia dupla: primeiro, criar espaços comunais livres como ocupas nos quais viver as próprias vidas; em segundo lugar, utilizar a confrontação militante tanto para defender sua contracultura e tomar a ofensiva contra o que eles consideravam repressivo, ou mesmo elementos fascistas. O lançamento de um black bloc mascarado em uma demonstração em Berlin em 1988 durante um encontro do Banco Mundial e do FMI se tornou um evento emblemático dos Autonomen quando, na ocasião, organizaram a criação de vizinhanças autônomas e info-stores, além de batalhas com a polícia e com neo-nazistas. Os anarquistas sentiram afinidade com os fluxos de autonomia política e os importaram, lincando e modificando ambos no processo.

     Por último, mas não menos importante, o dramático Primeiro de Janeiro de 1994, o aparecimento dos Zapatistas no cenário mundial para contestar o Acordo de Livre Mercado Norte Americano chamou atenção dos anarquistas para a importância da globalização como uma preocupação contemporânea com proporções frequentemente delimitantes de vida ou morte. A tomada zapatista dos vilarejos em Chiapas também religou a noção de que a resistência é possível, tanto em regiões pobres quanto ricas. “So você nos perguntar o que queremos, nós iremos sem vergonha responder: Abrir um buraco na História”, declarou o Subcomandante Insurgente Marcos. “Nós iramos construir um outro munto… Democracia! Liberdade! Justiça!”. Para os anarquistas, o uso criativo de altas tecnologias como a internet e baixas tecnologias como encontros na floresta, princípios comunicados e avanços práticos, e a tentativa de reclamar o poder popular através de municipalidades autônomas foi especialmente eletrizante. Subitamente, anarquistas de todos cantos apareceram em Chiapas para dar suporte à rebelião, carregando para casa lições para aplicar a um movimento anticapitalista global que um anarquismo remodelado iria logo ajudar a iniciar.

                    Mais do que a soma de suas partes

     Todas estas fibras de resistência, cada uma delas empurrada por momentos anteriores, costuraram-se e formaram o tecido do anarquismo contemporâneo. Dos Situacionistas, o anarquismo abraçava a crítica da alienação e da sociedade do consumo, e fé na imaginação; de Bookchin, a conexão entre o anticapitalismo, democracia direta, ecologia e pós-escassez; do movimento antinuclear, o foco em grupos de afinidade e conselhos bem como ação direta não violenta; dos Autonomen, confrontação militante, a estratégia dos black blocs e uma ênfase no faça-você-mesmo; e dos zapatistas o poder da internet, a solidariedade cultural cruzada e a globalização para a resistência transnacional. Mas o anarquismo que ganhou notoriedade em Novembro de 1999 é mais do que a soma dessas partes. É a única filosofia política hoje que aspira equilibrar uma variedade de agentes sociais de mudança e estratégias – ou, em última instância, uma diversidade de táticas, visões e pessoas – com noções universalistas de liberdade participativa fora das instituições e comportamentos impostos.

     Ao mesmo tempo em que os anarquistas humildemente compreendem que fazem parte de um grupo maior dentro das múltiplas lutas antiautoritárias, o anarquismo trouxe um conjunto de qualidades únicas e inseparáveis a estes movimento: uma instância abertamente revolucionária, colorida por uma orientação eminentemente ética, feita para além do ordinário por uma utopia deliciosamente e democraticamente direta.

                     O Momento Anarquista

     Mas ainda, por que Anarquismo?

     Porque o anarquismo definiu os termos do debate. Sua ênfase na revolução social com transparência significa que os anarquistas nunca tiveram medo de nomear a realidade concreta mascarada pelo termo globalização: ou seja, sociedade capitalista.

     Mas ainda, por que agora?

     Porque a globalização faz as aspirações anarquistas crescentemente necessárias. Longe de ser anti-globalização por si, os anarquistas há muito sonhavam com um mundo sem fronteiras cujo processo de globalização agora torna potencialmente factível. Algumas das caracteristicas defendidas pelos anarquistas estão postas, como a descentralização e a interconectividade, identidades elásticas e a fragmentação das dualidades, empréstimos criativos, cooperação e abertura. E, mais impressionante, a globalização está estruturalmente detonando com o centralismo estatal!

     Em seus dias, Karl Marx (1818-1883) anteviu a crescimento da hegemonia capitalista e sua habilidade cancerosa de reestruturar todas as relações sociais de acordo com sua própria imagem distorcida. Para Marx, estava destinado a atores sociais certos, em certas condições específicas, a “fazerem história” – ou seja, fazer a revolução e alcançar o comunismo no seu melhor e mais geral senso. Muito do que Marx apontou na época continua verdadeiro até hoje. O projeto heróico de Marx e múltiplos outros socialistas de abolir o capitalismo permanece mais pungente do que nunca, assim como a necessidade de um movimento revolucionário realizá-lo. Daí, o poder do “anticapitalismo”.

     O Anarquismo tradicionalmente anteviu outro desenvolvimento hegemônico que Marx ignorou: o Estado. Ao contrário do capitalismo, levou muitas décadas mais para que ganhasse o estado de naturalidade que a economia de mercado ganhou. Ironicamente, tanto para estatistas quanto anarquistas, justamente quando a democracia representativa do estilo norte-americano finalmente alcançou a hegemonia como a forma “legítima” de governança, a globalização começou  seu trabalho de reduzir o poder dos estados de certas formas – formas que passaram a permitir aberturas para formas horizontais de política. Pensar fora da “caixa estatista” agora faz mais senso a muitas pessoas e rapidamente está se tornando uma realidade, potencialmente oferecendo ao anarquismo a relevância que há muito desejou.

     À medida em que as economias nacionais vão cedendo lugar para outras globais, por exemplo, os estados são menos hábeis de prover seus cidadãos com qualquer rede de segurança social; quanto mais pessoas são forçadas ao status de refugiadas, o estado é menos apto a oferecer proteções legais e de direitos humanos. Por necessidade, as pessoas são compelidas a se voltarem a “algo mais” – com frequência uma espécie de abordagem de “auto-ajuda”.

     Nesse contexto, os experimentos anarquistas de organização democrática direta, confederação e apoio mútuo, entre outros, evidencia quão adequadas tais formas são para um mundo cada vez menos estatista e cada vez mais interdependente.

     No atual mundo globalizado, entretanto, “não estatista” pode significar tudo desde instituições supranacionais governadas por elites econômicas e organizações não governamentais internacionais até cortes mundiais e zonas de negócios regionais ou indivíduos flutuantes querendo empregar táticas de terror. A globalização dentro da estrutura capitalista pode muito bem dar origem a novas hierarquias e aprofundar a alienação, conformando tudo a sua própria imagem.

     Assim como o Marxismo precisou ser repensado no meio do século XX à luz da falha do socialismo de estado em alcançar a emancipação humana, o anarquismo precisa ser reteorizado em resposta à mudança em relação ao não-estatismo que impõe reconfigurações multiculturais de monopólios políticos bem como possíveis fissuras para uma ética alternativa. As práticas altamente participativas do anarquismo de hoje precisam ser continuamente re-imaginadas tanto para manterem-se três passos adiante daqueles que as quiserem cooptar quanto para estar a altura da tarefa de refazer a sociedade.

     Tanto teoria e prática precisam estar grudadas no presente se a política anarquista deve se tornar mais do que apenas uma nota de rodapé histórica acerca de um momento perdido.

     O extraordinário mix de humanos que apareceu nas ruas de Seattle pode encontrar unidade na diversidade precisamente porque os anarquistas puseram em prática seus modelos teóricos, como por exemplo a organização em grupos de afinidade e os conselhos e assembleias, permitindo que centenas de questões díspares encontrassem uma conectividade íntima e pudessem ser apresentadas.

     O projeto do presente movimento anticapitalista, e do anarquismo em geral, é prover uma luz guia, mesmo que não sejamos nós aqueles a finalmente encestarmos a bola.

     Em 1919, os anarquistas tomaram o poder em Munique por uma semana durante o curso da Revolução Germânica e rapidamente iniciaram toda sorte de projetos imaginativos para empoderar a sociedade como um todo. Mesmo Landauer sabia que o melhor que ele poderia fazer era construir um modelo para as futuras gerações: “Embora seja possível que a república do conselho seja apenas curta, eu tenho o desejo – e assim todos meus camaradas – de que deixe atrás de si efeitos duradouros na Bavária, de forma que, esperamos, quando um governo retornar (o que deve ser esperado), círculos sábios possam dizer que nós não fizemos um mau começo, e que não teria sido mau se nos fosse permitido continuar nosso trabalho”. Landauer foi morte por uma onda de reação de extrema direita logo após isto, e quatorze anos após os nazistas chegaram ao poder.

     Ainda, os grandes experimentos do passado que buscavam uma sociedade livre e auto-governada não se extinguiram – eles reemergiram nas correntes anarquistas contadas aqui e, de forma promissora, a atual contenda contra o capitalismo segue sua luta ao logo de linhas antiautoritárias.

     Não é um mau começo para o século XXI.

 

(continua…)

Outras Partes:

Parte 1 – O Anarquismo e suas Aspirações

Parte 2 – Looking Backward

Parte 3 – Adiante! e Filosofia da Liberdade

Parte 4 – A Vida como um Todo

Parte 5 – O Conteúdo Ético

Parte 6 – Orientação Ecológica

Parte 7 – Acenando em direção à Utopia

Parte 8 – A Promessa Anarquista para uma Resistência Anticapitalista

Parte 9 Democracia é DIreta (em 12/10)

Parte 10 – Retomada das Cidades: do Protesto ao Poder Popular (em 19/10)

 

 

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