Quase Filosofia

Um Processo

Um Processo. A vida é um Processo.

Antes que os descendentes de Franz Kafka e possivelmente seus fãs tentem me “processar” por plágio, alto lá! Explico.

Desde Heráclito sabemos que nesta vida tudo é mudança. Paradoxalmente, parece que esta é a única coisa estável no mundo: a certeza da mudança.

Viemos para cá a partir de uma esquisita troca de energias que acabaram em resultar em nós mesmos. Aqui chegando, cada ventilação leva à respiração celular, que por sua vez é um “processo”de oxigenação tecidual que ocorre, como sabemos, na mitocôndria. Esta organela transforma o oxigênio em uma forma de energia a ser utilizada pelos organismos biológicos. E assim vamos vivendo. Alimentando-nos do que é produzido pela Natureza, defecando e urinando o que não aproveitamos, perdendo pele, crescendo, engordando e nos multiplicando. Mas não é o ponto de vista biológico que quero enfocar.

Desde nossa concepção – deixo para os mais polemistas a discussão sobre quando esta tem hora – passamos a viver de estímulos que acabam por constituir parte do que somos e também parte do que seremos. Parte do que somos porque a aceitação de que constitui tudo o que somos implica em uma crença forte demais na idéia de que o ambiente é responsável por moldar todo o indivíduo e ainda acredito que o componente genético tem influência sobre parte do nosso ser. Existe pré-história do indivíduo, a meu ver.

Aquele IGF-1 em níveis abaixo de esperado naquele período levará, muito provavelmente, a um indivíduo de compleições menores do que seria esperado se os níveis do fator de crescimento estivessem nos parâmetros ditos normais. Aquele Tio Patinhas lido com tanto prazer pela criança que o comprou com o próprio dinheiro da mesada (e o fez em detrimento da merenda que poderia ter comprado) terá um significado com toda certeza na personalidade daquele indivíduo.

Alguns estímulos mais, outros menos, mas todos, sem exceção, fazem parte da nossa história e fazem de nós o que somos. Tudo isso é um Processo. Um Processo sem início e sem fim, com o qual devemos nos acostumar tão logo tenhamos contato com a noção de sua existência.

A percepção da existência deste Processo pode nos levar a caminhos bem distintos. Um deles, o reconhecimento da verdade inerente ao mesmo e sua inevitável validade para todos seres animados e inanimados existentes no mundo e a lógica atitude de respeito para com todo e qualquer ser que caminha, rasteja ou permanece imóvel; o outro, a negação desta idéia, e a necessidade de causar malogro a outrem, com vistas a benefício próprio sempre que possível, a despeito da necessidade do outro indivíduo ou coisa.

O pensamento de Processo, parte de uma ética anarquista, imiscui-se da necessidade de existência de um Deus, mas não rejeita a possibilidade de uma inteligência que possa estar por trás da criação das leis que ora regem todas as coisas. Não depende de anuência por parte deste suposto Deus para os atos da vida ordinária tampouco deve satisfação ao mesmo por atos realizados ou deixados de realizar.

Ora, todos buscamos em última instância a felicidade. Apesar desta senhora não trazer em si a própria definição do que seja, cada um constrói para si este ideal. Cada qual busca a felicidade que para si imaginou.

Nunca esqueço de uma tira do cartunista Bill Waterson em que seu personagem Calvin está, no primeiro quadrinho, delirando com desejos de chegar em Marte, de morar em uma mansão, ser multimilionário, ter todos babando ao seu redor até que pergunta a seu amigo imaginário, Haroldo, do que este precisaria para ser feliz; No segundo quadrinho, Haroldo prontamente responde: “Um sanduíche com pasta de amendoim”. No terceiro quadrinho, Calvin horrorizado não acredita nas palavras do amigo, criticando-o por ser tão destituído de desejos e sonhos. No quarto quadrinho, desvela-se o pano para o ato final, quando Calvin, que seguiu Haroldo até a cozinha, vê este calmamente passando pasta de amendoim em duas saborosas fatias de pão.

Ao mesmo tempo em que concordo que devemos sonhar, mas por mais alto que seja sem tirar os pés do chão, acredito também que toda grande expectativa traz consigo uma possibilidade de grande frustração quando não temos nosso objetivo alcançado. Por isso, é terrível ir ao cinema depois de uma propaganda extremamente enaltecedora. Geralmente quebramos a cara. Os filmes que mais nos enternecem ou impressionam são, geralmente, aqueles que vamos assistir sem grandes expectativas.

A propaganda, já que toquei no assunto, é outra que vitima mais do que guerras, acidentes de trânsito ou mesmo desnutrição. Através da propaganda, acabamos por viver em um mundo irreal. Passamos a acreditar que todos temos direito de ter acesso àqueles bens de consumo que são apresentados como se fossem necessidade de máxima premência. Quem pode, ora bolas, que quiser manter-se conectado com a modernidade, ficar sem aquele aparelho celular com câmera fotográfica e mp3 (ou mp4) ou então sem aquela tv de plasma de última geração?

A triste verdade é que não há nem energia nem riqueza no mundo para manter tal nível de sofisticação tecnológica para todos. Para manter nosso status, estamos com certeza subjugando muitos e levando-os à pobreza. Deixando a máquina da propaganda exercer seu papel – e nos deixando quedar a ela – entregamo-nos sem luta aos desejos de outros que se fazem passar por nós. Sem o questionamento crítico, jamais saberemos se somos nós ou se somos títeres animados por forças orwelianas.

A saga de nossas vidas pode ser bem distinta, de acordo com o que cada um consegue perceber. A noção de percepção aqui toma vulto, e é um dos mais importantes conceitos em um mundo que vive, na realidade, em plena crise de percepção. Grande parte das pessoas ao nosso redor (e talvez você mesmo) viva no automático, catapultado por um sistema capitalista onde o trabalho é o centro de sua vida e a necessidade de realizá-lo o leva a uma espiral de angústia insolúvel, já que sua busca incansável é por gerar renda para fugir do seu próprio trabalho.

Confúcio dizia que nosso verdadeiro trabalho era encontrar um trabalho do qual realmente gostássemos, pois a partir daí, não teríamos que trabalhar mais nenhum dia em nossas vidas. Somos manipulados por um sistema que nos diz que ter um carro é bom, pois este nos dará a liberdade de nos dirigirmos para onde nossos corações mandarem quando, na verdade, este carro estará nos legando a escravidão, tal é o impacto negativo do automóvel no orçamento doméstico. O automóvel, que serviria para levar a família ao zoológico no fim-de-semana, para dar comida aos macacos, na verdade afasta o pai (e muitas vezes a mãe) das crianças, já que estes têm que trabalhar muitas vezes mais para pagar as prestações, taxas, impostos, manutenção e combustível para alimentar o carro, deixando o macaco sem amendoins.

Recentemente fui exposto ao exemplo de um senhor de 90 anos que foi renovar sua carteira de motorista e apresentava algumas alterações compatíveis com sua idade, como surdez, dificuldade visual, cardiopatias crônicas e tonturas ocasionais. Frente ao quadro de tonturas (que pode levar a acidentes com vitima do próprio candidato como de outras pessoas) objetei quanto à renovação da carteira para o referido senhor. O professor contra-argumentou afirmando que o senhor utilizaria o carro apenas para levar sua esposa ao médico e para buscar o pagamento da aposentadoria uma vez ao mês. Perguntou se teríamos coragem de retirar a carteira do idoso candidato à renovação de sua carteira nesta situação, sendo que ele nunca havia se envolvido em um acidente, em anos de direção. Postulei que havia encontrado uma solução para o dilema: e que tal se o velhinho vendesse seu automóvel e passasse a levar sua senhora ao médico e buscasse sua aposentadoria de táxi? Certamente, estaria se deslocando de forma muito mais confortável e segura, para si e para o resto do trânsito, sendo que o dinheiro obtido com a venda do carro mais o que deixaria de gastar em combustível e impostos e seguro do veículo seriam mais do que suficientes para seus gastos mensais com deslocamento. A resposta do professor para minha idéia foi a de que eu não estava entendendo que a retirada da permissão de dirigir para o senhor idoso representaria um ataque direto ao seu orgulho e à sua liberdade, já tão restrita àquele ponto da vida. Na hora não me ocorreu objetar, mas agora penso que o problema está justamente aí: nesta percepção errônea de nossa sociedade, compartilhada pelo senhor idoso e pelo meu professor, de que seremos eternamente capazes de tudo e nesta crença imprecisa de que não degeneramos, que não seremos podridão e pó, mesmo ainda em vida. Neste aspecto, temos muito a aprender com os índios de algumas tribos, que identificando a proximidade da hora de morrer, afastam-se da tribo e vão terminar sua vida em isolamento. Quero dizer com isso apenas que devemos reconhecer nossos limites e a hora de parar.

Estes são apenas alguns exemplos desta crise de percepção da qual somos vítimas hoje em dia. O exemplo etnográfico que dei acima, lembrando nossos irmãos índios, traz para perto a noção de alteridade, este respeito ao outro e a capacidade de se colocar empaticamente em seu lugar, tão em falta em nossa contemporaneidade. Talvez tenha faltado a mim no caso do senhor de noventa anos no exemplo acima?

 

# # #

Cai o pano. Um novo ato é apresentado em nosso Processo. Hoje estou fazendo 30 anos de idade. Seguindo a idéia de Nietszche do Eterno Retorno, diria que viveria minha vida da mesmo forma que vivi até agora. Todas amizades que cultivei, os deslizes que cometi, o sofrimento que passei ou criei, sorrisos que sorri e gerei fazem parte da história da minha vida. Se, depois da morte, voltar a viver cada instante da mesma forma, com certeza chegarei novamente aos 30 anos feliz como estou agora.

A perspectiva de uma vida que deve ser vivida dia-a-dia já foi conquistada há algum tempo. Ainda resisto e teimo em, vem ou outra, programar demasiadamente o futuro. O futuro é agora.

Neste novíssimo filho que nasce juntamente com meus 30 anos de idade, o website reinehr.org, tratarei de expor tudo que gosto e convidar a participar da minha vida aqueles de quem gosto e que também têm apreço por mim. Aqui será um espaço para a medicina e para a gastronomia. Para a política e para a antropologia. Para a música e para a economia. Para as artes plásticas e para a fotografia. Para o cinema e para a ecologia. Para a literatura e para a filosofia. Para a ética e para a sociologia. Para a história e para a geografia. Para o turismo e para a anarquia. Para a religião e para a antroposofia. Para a ciência e para a verborragia. Para a noite e para o dia. Para a tristeza e para a alegria.

Passarei a transportar para cá, além das crônicas, críticas, contos e poesias que escrevo algumas fotografias que tiro, músicas que gravei e gravarei, filmes que fiz e que farei, artigos médicos de revisão para público leigo acerca da minha especialidade médica (endocrinologia e metabologia). Basicamente, o reinehr.org será um website pessoal. Entretanto, espero deixar o ambiente convidativo, aconchegante e propício ao debate de alguns assuntos que aqui serão abordados.

Tratarei, sozinho ou com auxílio de quem se dispuser, de revelar o colorido que existe por trás de cada ser humano. Mesmo o mais embotado ou desbotado ser vivente tem em si, ao menos de forma latente, um arco-íris. Por vezes não conseguimos enxergar isto nos outros ou inclusive em nós mesmos. Aqui, no reinehr.org, realizamos uma busca. Uma aventura. Um processo.

Porque nem sempre as cores revelam-se facilmente.

 

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Quintessencial

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3 Comentários

  • Rafael Reinehr

    Deixar a alma nos alcançar
    Lindo Clarice. Lindíssimo, E totalmente de acordo com o meu momento, em que sinto a necessidade de “deixar minha alma me alcançcar”…

  • Clarice Villac

    ‘A velocidade da alma’
    Rafael, seu texto traz reflexões preciosas !

    E então,uma parábola…

    ***

    [b]A velocidade da alma[/b]

    Um viajante, ansioso para chegar logo ao seu destino no coração da África, pagava um salário extra para que os seus carregadores nativos andassem mais rápido. Durante vários dias, os carregadores apressaram o passo.

    Certa tarde, porém, todos sentaram-se no chão e depositaram seus fardos, recusando-se a continuar. Por mais dinheiro que lhes fosse oferecido, os nativos não se moviam. Quando, finalmente, o viajante pediu uma razão para aquele comportamento, obteve a seguinte resposta:

    “Andamos muito depressa e já não sabemos mais o que estamos fazendo. Agora precisamos esperar até que nossas almas nos alcancem”.
    .

    Esta parábola veio numa mensagem do amigo Raul Motta.
    [url]http://www.arsducaest.blogspot.com/[/url]

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