O Anarquismo e suas Aspirações – parte VII
Acenando em direção à Utopia
“A mudança revolucionária não vem como um momento cataclísmico.. mas como uma sucessão sem fim de surpresas, movendo-se em zigue-zague em direção a uma sociedade mais decente. Nós não precisamos nos engajar em grandes e heróicas ações para participar do processo de mudança. Pequenos atos, quando multiplicados por milhões de pessoas, podem transformar o mundo.” – Howard Zinn, em O Otimismo da Incerteza, 2004
Existem três outras coisas cruciais que anarquistas tem em comum. Elas emergem do grito anarquista contra tudo que é injusto na sociedade e evolue da sua raiva contra tudo que obstrui a liberdade substancial. Elas também corporificam a exuberância de tudo que é possível no mundo, sua alegre defesa das éticas que moldam sua práxis variegada. Estas três são as Visões Reconstrutivas, as Políticas Prefigurativas e as Formas de Auto-organização anarquistas.
Anarquistas estão acostumados a perder. A história da luta por valores não hierárquicos é uma luta trágica e sangrenta. Ainda para citar Moxie Marlinspike, anarquistas “sabem que existem momentos no tempo, mesmo precedendo a derrota, em que as pessoas aprende mais sobre elas mesmas, e sentem um grande senso de inspiração daquilo que estão experenciando, que de todas as vitoriosas navegações de George Washington por todos os rios Delaware do mundo”. O processo instável de construir um mundo melhor significa relembrar que o anarquismo é uma tradição muito bela – uma que acolhe outras belas tradições. É sobre lembrar o que os anarquistas e outras pessoas afins criaram através da história. Sim, o objetivo é vencer, mas de várias formas, grandes e pequenas, já ganhamos muito. O Anarquismo faz as perguntas certas acerca da transformação social, e então explora múltiplas formas de respondê-las, mesmo que ele nunca encontre “A Resposta”.
Visões Reconstrutivas
O Anarquismo é mais do que uma consciência social ética e vibrante, e mais do que uma crítica e visão social. Os anarquistas não apenas falam sobre melhores formas de organização social. Eles se atiram no modelamento de novos mundos, mesmo que isso signifique construir castelos – ou coletivos, comunas e cooperativas – nas areias da sociedade contemporânea. Anarqusitas acreditam que as pessoas irão “pegar” o anarquismo visceralmente e intelectualmente no processo de vê-lo em ação, ou melhor ainda, experimentando com seus valores por elas mesmas. Isso necessita práxis. As pessoas não irão desistir do conforto (ou desconforto) do status quo sem algumas ideias do porque deveriam fazê-lo.
De várias formas, os anarquistas apresentam visões reconstrutivas que mapeiam o caminho em direção a uma sociedade além da hierarquia. Visionar este mundo é, claro, parte da prefiguração e da auto-organização. O Anarquismo, ao contrário de outras filosofias políticas, retém um impulso utópico. O conceito de utopia dentro do Anarquismo não é alguma terra muito distante, uma terra do nunca; nem é uma forma de ignorar as necessidades e desejos materiais. Ao invés, é precisamente uma forma de levar em conta a totalidade das necessidades e desejos materiais e não materiais – não simplesmente pão e manteiga, mas pão, manteiga e também rosas – e imaginar formas nas quais todos possam satisfazê-las. O Anarquismo olha para o passado, quando as pessoas viviam formas comunais e auto-geridas de organização; ele vê potencialidades no presente; e ele sustenta uma confiança clara de que os humanos podem fazer sempre melhor no futuro. A sensibilidade utópica do anarquismo é esta curiosa fé de que a humanidade pode não somente demandar o impossível mas também realizá-lo. É um salto de fé, mas aterrada e vislumbrada a partir de experiências atuais, grandes e pequenas, nas quais as pessoas presenteiam caminhos de vida igualitários uns aos outros através da sua criação coletiva.
O Anarquismo não é somente um ideal; não é apenas um experimento difícil. Nem um diagrama ou um plano rígido. Sua instância reconstrutiva sonha formas de incorporar suas éticas e então tenta implementá-las. Muitas práticas atualmente existentes, anarquistas ou não, ilustram que relações sociais horizontais já são possíveis – e funcionam melhor que relações verticais. Anarquistas instalam produções culturais open source e faça você mesmo para exemplificar ideias imaginativas que inspirem outros a agir. Eles documentam a história das pessoas em pôsteres; eles pintam janelas para outros mundos em muros públicos ou os publicam em zines; eles usam música indie e mídias independentes para disseminar aspirações libertárias. Anarquistas criam espaços para celebrar formas alternativas de ser e organizar, de carnavais contra o capitalismo a “mercados realmente, realmente livres”, até feiras anarquistas e infoshops. Eles desenvolvem contra-instituições como escolas auto-dirigidas e espaços de trabalho auto-gerenciados. Nestes e em outros caminhos, anarquistas experimentam e linkam inovações e indicam as potencialidades para uma transformação social mais ampla.
Políticas Prefigurativas
Política prefigurativa: a ideia de que deve haver uma relação ética consistente entre os meios e os fins. Meios e fins não são a mesma coisa, mas anarquistas utilizam meios que apontam na direção de seus fins. Eles escolhem ações ou projetos baseados em como estes se encaixam em objetivos de longo prazo. Anarquistas participam no presente de formas que eles gostariam de participar, muito mais completamente e de forma muito mais auto-determinada, no futuro – e encorajam outros a fazê-lo da mesma forma. A política prefigurativa então alinha os valores de alguém à sua prática e às práticas da nova sociedade antes que ela esteja completamente em seu lugar.
Ainda, o “fim” no Anarquismo não é uma destinação final. Não é nem predeterminada nem um local único, singular, nem uma revolução após a qual tudo se tornará e permanecerá perfeito. Fins, para anarquistas, são uma constelação de éticas, testadas agora e sempre, que oferecem grandes quantidades de vida livre, mesmo que as pessoas continuem preenchendo o que a liberdade se parece na prática. Os meios envolvem a jornada em si, que também é uma parte íntima e interconectada com os fins. A relação eticamente consistente entre os meios e os fins é, simplesmente, incorporada no processo em si mesmo, e continuamente melhorar as formas de chegar aqui até ali é o que é revolucionário.
Revolução se torna tanto uma noção grandiosa – aquele sopro de esperança de fundamentalmente refazer o mundo – e algo iminentemente “pegável” que nós podemos tentar aqui e agora. O Anarquismo pede às pessoas que “construam a estrada à medida em que viajam”. É no processo de construir novos mundos que a transformação acontece, em como as pessoas se organizam para fazer seu caminho em direção a algo apreciavelmente melhor.
Revolução carrega em si evolução. Anarquistas, como todo mundo mais, precisam se tornar pessoas capazes de sustentar uma nova sociedade. A organização e as instituições de uma nova sociedade necessitam se desenvolver em formas que são capazes de estruturar novas relações sociais. Anarquistas infundem tudo o que fazem com gestos, algumas vezes extravagantes, do que irá substituir, entre outras coisas, o capitalismo e o estado, heteronormatividade e ditadura do mais capaz. Tais atos prefiguram, ou mostram a possibilidade, antecipadamente, de organizações e relações sociais igualitárias. Como tal, elas demonstram e corporificam o poder da imaginação, participação substantiva, e o valor de todas as coisas vivas – todas as quais, no seu máximo coletivamente auto-geradas, poderão realmente quebrar o feitiço dos arranjos de poder de cima para baixo.
Formas de Auto-organização
As visões reconstrutivas do Anarquismo praticam como reorganizar a sociedade. Eles põe a ação direta em Ação!
A ação direta toma uma de duas formas. Sua forma “positiva” ou proativa é o poder de criar. As pessoas fazem coisas agora da forma que elas querem vê-las feitas, de forma crescente, no futuro, sem representantes ou formas verticais de poder. Elas ignoram “altos” poderes, e flexionam seus próprios músculos coletivos para fazer e implementar decisões sobre suas vidas. A forma “negativa” ou reativa de ação direta, o poder de resistir, usa meios diretos de desafiar as coisas ruins – por exemplo, uma greve geral para parar uma guerra.
Ambos tipos de ação direta são úteis, é claro. Eles caminham de mãos dadas. Estudantes, professores e funcionários de uma universidade podem por exemplo ocupar um prédio para protestar contra cortes orçamentários e ao mesmo tempo utilizar processos democráticos diretos para auto-determinar seu curso de ação (que pode então direcionar os ocupantes a querer uma forma totalmente diferente de educação). Um projeto de Vigilância da Polícia pode usar tecnologias de comunicação gratuitas e abertas, como uma rádio livre, como uma forma para as pessoas reportarem diariamente sobre abusos policiais, e ao mesmo tempo desenvolver uma mídia tocada pela comunidade. Mas é quando as pessoas crescentemente tomam conta e se colocam como co-responsáveis, instituindo e participando de organizações não hierárquicas, que elas começam a ter poder de redesenhar a sociedade, ao invés de simplesmente o “poder” de reagir contra aquelas forças que em última instância tem poder sobre elas.
Fechamos o círculo para a concepção do Anarquismo como aspirando um direção a indivíduos livres dentro de uma sociedade livre. Estamos totalmente no campo da auto-determinação, auto-gestão, e auto-governo, como realidades vivas, mesmo que em formas embriônicas. A única forma de construir estas novas relações e instituições sociais é fundá-las e alimentá-las nós mesmos. Anarquistas estão sempre envolvidos em todas formas de projetos auto-organizados, tanto operando sob a superfície para confeccionar novas bases para uma vida social e ecológica quanto na superfície, em experimentos visivelmente relevantes que refletem noções de senso comum sobre como todos poderiam viver suas vidas em conjunto, bem como as várias formas que já o fazemos.
Muitos projetos anarquistas acontecem dentro de círculos anarquistas ou são direcionados a outros anarquistas. isso permite aos anarquistas experimentarem com formas de organização entre pessoas relativamente afins que já estão comprometidas com elas. Isso facilita o desenvolvimento da muito necessária infraestrutura auto-gerenciada para desenvolver ideias, construir habilidades e mentorar futuras gerações de anarquistas.
O buraco é bem mais embaixo quando buscamos integrar grupos de pessoas e comunidades não afins, que não estão nesta “pegada” de produzir um mundo melhor para todos, mas ainda presos ao conteúdo, às métricas e métodos capitalistas de geração de escassez, acúmulo, competição, consumo, desenvolvimento através da expansão e exploração dos meios naturais e do trabalho humano a partir de relações hierárquicas de dominação. Nestes casos, a incompatibilidade é clara e não haverá harmonia de um eventual relacionamento. Se pode escolher um de dois caminhos: enfrentamento ou desaparecimento.
Particularmente, acredito que o enfrentamente consome energias enormes que poderiam estar sendo concentradas na criação das estruturas, instâncias e vivências que desejamos multiplicar. Portanto, ser hábil em praticar o desaparecimento da cena do conflito (não confundir com negação ou fuga), é uma habilidade interessante nestes dias de transição.
Os anarquistas não tem todas as respostas, nem buscam ter o monopólio das mesmas. Eles apenas fazem boas perguntas e estimulam que melhores respostas sejam dadas. Não querem um “mundo anarquista”, ao invés disso, um mundo igualitário no qual cada um aprenda a pensar e agir por si mesmo levando em conta a coletividade. Anarquistas trazem esta sensibilidade bem como suas capacidades de auto-governança às lutas ao redor do mundo, desde cidades-tenda para aqueles que não tem casas até cooperativas organizadas por grupos de terras comunitárias para aqueles que querem controlar sua moradia.
A auto-organização é a chave para garantir a posse não exclusiva – ou melhor, a posse em comum – da liberdade. Como o Anarquismo consistentemente afirma, a liberdade só é possível quando todas as pessoas compartilham a habilidade de determinar e moldar relações sociais e organizações sociais. A única forma de criar formas de justiça tão amplas é garantir que todos tenham uma porção igual de poder, que nós não apenas discutamos, debatamos e dialoguemos acerca de qual tipo de socidade e vida cotidiana queremos, mas também resolvamos os problemas, implementemos, avaliemos e revisitemos aquelas decisões sobre a totalidade da vida. Como essas formas de auto-organização irão se parecer na prática é justamente o escopo do Anarquismo; é o que fazemos – em essência, pesquisa e desenvolvimento voluntário e, desenhando a partir de boas ideias tanto de dentro como de fora do meio social anarquista. O Anarquismo pega emprestado de possibilidades aparentemente impossíveis do passado e do presente. Ele então presenteia estas possibilidades a todos, oferecendo esperança ao apontar em direção a um futuro crescentemente liberador.
O laboratório do Anarquismo é a totalidade da vida. Ele explora o que a auto-determinação iria parecer em relação ao sexo, sexualidade e orientação sexual; ele articula estratégias e contravisões para oprimidos, colonizados ou ocupados ao redor do mundo. Ele testa novas formas de auto-gerenciamento do espaço de trabalho, enquanto reimagina a ideia de “trabalho” em si mesma, em termos de como as pessoas materialmente produzem e distribuem tudo desde comida, a vestimentas, a energia e a tecnologias de comunicação. Os anarquistas auto-organizam o que hoje é visto como “serviços”, de educação a saúde mental e física, a cafés e bibliotecas, a operações de resgate. Eles disponibilizam novos mecanismos de auto-governança, de coletivos e grupos de afinidades, a assembléias de vizinhança, conselhos e confederações – todas inclinadas para a experimentação com métodos de tomada de decisão diretamente democrática e por consenso. Nestas formas e em incontáveis outras, anarquistas dão significado tangível a uma forma de organização social cuja premissa é a Liberdade.
(continua…)
Outras Partes:
Parte 1 – O Anarquismo e suas Aspirações
Parte 2 – Looking Backward
Parte 3 – Adiante! e Filosofia da Liberdade
Parte 4 – A Vida como um Todo
Parte 5 – O Conteúdo Ético
Parte 6 – Orientação Ecológica
Parte 7 – Acenando em direção à Utopia
Parte 8 – A Promessa Anarquista para uma Resistência Anticapitalista
Parte 9 – Democracia é DIreta (em 12/10)
Parte 10 – Retomada das Cidades: do Protesto ao Poder Popular (em 19/10)