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Resenha da “Trilogia dos Escritores”, de Guillaume Musso

Resenha da “Trilogia dos Escritores”, de Guillaume Musso

Trilogia dos Escritores - Musso

Conheci Musso a partir do empréstimo de A Vida é um Romance, pelo nobre colega professor e escritor Orlando Fonseca. Apaixonei-me. Na sequência, o mesmo distinto mestre emprestou-me A Garota e a Noite. Novo arrebatamento. Como eu tinha vivido 48 anos de vida sem conhecer essa escrita magnética, bem conduzida, que nos mantém tensos e desejosos de saber o próximo acontecimento, a próxima reviravolta, a próxima descoberta e a próxima acobertação nesta série de suspense “quase policial” que também é um exercício de metaliteratura?

Guillaume Musso reuniu, num volume-coletor, três romances que dialogam entre si pelo mesmo fascínio: escritores como personagens e a linha tênue entre o que se vive e o que se inventa. A Trilogie des écrivains junta La Jeune Fille et la Nuit  (A Garota e a Noite) (2018), La vie secrète des écrivains (A Vida Secreta dos Escritores) (2019) e La vie est un roman  (A Vida é um Romance) (2020). Não é uma “saga” no sentido estrito – cada livro tem trama própria -, mas o conjunto foi concebido pelo autor como um tripé de perspectivas sobre a escrita, o artifício e o espelho quebrado entre realidade e ficção.

O conjunto: um Musso mais meta, igualmente pop

Nestes três títulos, Musso conserva o seu ritmo de thriller – cortes rápidos, reviravoltas, cliffhangers* -, mas desloca o holofote para a própria carpintaria do contar. São histórias que avançam como quebra-cabeças literários, abrindo portas falsas, dobrando a cronologia e, de propósito, nos lembrando de que estamos dentro de um jogo. O projeto, declarado pelo autor, é compartilhar “o vertigem que nasce do jogo entre ficção e realidade” – programa estético que costura o volume do início ao fim.

*Cliffhanger: recurso de enredo que termina um capítulo ou história numa situação de grande suspense, perigo ou revelação chocante, sem solução imediata, com o objetivo de prender a atenção do leitor e incentivá-lo a continuar a leitura na próxima parte para descobrir o desfecho


1) La Jeune Fille et la Nuit (A Garota e a Noite) (2018) – memória, culpa e um “campus noir”

Ambientado na Côte d’Azur, alternando inverno de 1992 e primavera de 2017, o romance retoma a reunião de ex-alunos e um segredo irrespirável: uma jovem de 19 anos (Vinca) desaparece durante uma tempestade de neve; 25 anos depois, três amigos – agora adultos, um deles escritor — precisam enfrentar um crime antigo literalmente emparedado no colégio que está prestes a ser demolido. A estrutura de “cold case” é clássica; a execução, eficaz.

O livro funciona muito bem como romance de atmosfera: paisagens azurianas luminosas contrastadas com a neve inicial, o microcosmo de um campus e a psicologia dos amigos minada pela passagem do tempo. É também, dentro da trilogia, o volume menos “metaficcional” e mais polar – o escritor aqui é personagem afetado pela trama, não o laboratório da narrativa. O sucesso da história levou a uma minissérie em 2022, o que diz algo sobre seu apelo visual e a gramática televisiva dos ganchos.

Ponto alto: a cadência de revelações e o uso do cenário como engrenagem dramática.
Senão: algumas coincidências são convenientes demais – preço comum do gênero.


2) La vie secrète des écrivains (A Vida Secreta dos Escritores) (2019) – ilha, reclusão e o quebra-cabeça literário

Aqui, Musso mergulha de cabeça no mito do escritor recluso. Nathan Fawles, romancista de culto, decide parar de publicar e se exila numa ilha mediterrânea. Duas décadas depois, uma jovem jornalista chega para decifrar o enigma – no mesmo dia, um corpo aparece numa praia e a ilha é fechada. A partir desse gatilho, o livro vira um confronto perigoso em que verdades ocultas e mentiras deliberadas se duelam, amor e medo se encostam, e o leitor é convidado a montar um “puzzle literário” cujo golpe final reposiciona todo o tabuleiro.

É o romance que mais explicita o jogo de espelhos autor-leitor: pistas metatextuais, citações e um prazer quase lúdico em falar de livros dentro de um livro. Como investigação policial, é apertado; como reflexão sobre a máquina de escrever (e de ser lido), é generoso.

Ponto alto: a engenharia narrativa “a portas fechadas” da ilha e o tema da autoria como performance.
Senão: trechos expositivos podem alongar o passo, mas a recompensa chega com folga no desfecho.


3) La vie est un roman (A Vida é um Romance) (2020) – quando o livro entra na vida (e vice-versa)

O volume mais ousado da trilogia abre com um golpe de ilusão: a filha de três anos de uma romancista famosa desaparece de um apartamento fechado por dentro, sem explicação física plausível. Ao mesmo tempo, do outro lado do Atlântico, um escritor destroçado guarda a chave do mistério – e a romancista irá caçá-lo. Em três atos e dois “coups de théâtre”, Musso encena uma mise en abyme vertiginosa sobre o poder dos livros, a porosidade entre páginas e mundo, autor e criaturas, vida e invenção.

É thriller e é ensaio ficcional sobre escrever; é entretenimento e é declaração de amor à literatura. Se você gosta do Musso prestidigitador, que tira um coelho do chapéu no último capítulo, vai se sentir em casa – e, talvez, um pouco provocado a reler pistas desde o início.

Ponto alto: a arquitetura teatral e a reflexão afetuosa sobre a fé no texto como motor de sentido.
Senão: quem exige realismo estrito pode torcer o nariz para o pacto mágico proposto no enigma inicial.


O que une os três (e o que os diferencia)

  • Tema-eixo: escritores em conflito – com o passado (Jeune Fille), com a própria obra e a fama (Vie secrète), com a ontologia do que é real (Vie est un roman). O volume-coletor declara essa intenção: três “perspectivas” para narrar a paixão pela escrita e o jogo entre ficção e realidade.

  • Formas do isolamento: o campus, a ilha, o apartamento-enigma – cenários que funcionam como laboratórios narrativos.

  • Estratégia de leitura: Musso usa reviravoltas como ferramenta de significado, não só de susto. Em Vie secrète e Vie est un roman, isso é textualizado: o livro fala de livros.

  • Gradiente de “meta”: do thriller psicológico clássico ao romance sobre o romance. A curva vai apertando o diálogo com a literatura enquanto mantém o apelo popular.


Para quem é (e como ler)

Se você busca suspense bem azeitado com um pé na reflexão sobre a própria escrita, esta trilogia é terreno fértil. A ordem cronológica de publicação preserva a progressão do projeto (2018 → 2019 → 2020), do realismo culpado ao jogo metaficcional pleno. O volume-coletor lançado em 3 de novembro de 2021 cumpre, portanto, uma função curatorial: apresentar o conjunto como um corpo de ideias — mais do que uma caixa de histórias.


Veredicto

A Trilogia dos Escritores é o Musso de duas faces: o engenheiro do enredo e o alquimista do texto. Em La Jeune Fille et la Nuit, ele domina o tempo psicológico; em La vie secrète des écrivains, enuncia o pacto ambíguo entre verdade e máscara; em La vie est un roman, escancara a oficina do ficcionista e nos lembra que todo romance é um experimento de realidade – e de desejo.

Profissionalmente falando: é um projeto coeso, com oscilações de verossimilhança assumidas em favor do prazer do jogo. Didaticamente, é uma boa porta de entrada para leitores de suspense que queiram testar águas mais metaficcionais – sem perder a graça do “vira-página”. E, literariamente, é o gesto de um autor que, ao celebrar a linguagem, nos provoca a fazer o mesmo: viver escrevendo e escrever vivendo. Afinal, como o próprio volume sugere, quando a ficção nos captura, a realidade às vezes melhora o enredo. (E quem disse que a vida não gosta de um bom plot twist?)

Leitura recomendada, sobretudo, para quem deseja sentir – na pele e no papel – o prazer do texto em movimento.