Um ensaio sobre o valor político-existencial do “tempo perdido” – por Aurélio Veredas
I · Incêndio inicial — O clarão de um vídeo no meio-dia digital
Num ponto qualquer de 2015, entre duas aulas e um café esfriando sobre a mesa, o estudante de filosofia Stephan Joppich cede ao convite de um algoritmo e clica num vídeo de Casey Neistat. Durante poucos minutos queimarão nele, como fósforo breve, quatro sentenças mágicas: 14 horas de trabalho, 4 de sono, 3 de exercício, 3 de família. E então — plim ! — a velha ilusão reaparece: se eu submeter cada segundo ao chicote da eficiência, serei, enfim, alguém.
Não foi o primeiro nem será o último a sentir essa combustão. O que importa é o que veio depois: semanas de “No Wasted Time”, seguida da mais amarga constatação — a paz não mora no cronômetro, e sim nos minutos que a planilha chama de vazios. Era no banco de praça, no passeio sem GPS pela floresta, na preguiça morna de um prado que ele reencontrava a inteireza.
Esse curto relato bastaria para disparar perguntas de pólvora: como transformamos lazer em culpa? Por que a angústia grita sempre que a agenda cochila? Que civilização é essa que confunde pressa com valor moral? É sobre tais perguntas que este ensaio se debruça, tentando desenhar — com paciência de mandala — um mapa entre filosofia, ciências sociais, antropologia e psicologia.
II · Desvelar — Um diagnóstico da cultura da produtividade total
1. A máquina simbólica do “tempo é dinheiro”
Desde que Benjamin Franklin cunhou o provérbio, acumulamos variáveis, mas não mudamos o enunciado central: todo intervalo improdutivo parece roubar valor à vida. Isso se torna lei econômica, mandamento religioso (não serás preguiçoso) e algoritmo publicitário. O feed nos lembra a cada rolagem que alguém está “fazendo mais” — correndo maratonas às 5 a.m., escrevendo livros em trens, transformando hobbies em renda passiva. É a mistura explosiva da ética protestante descrita por Weber com o voyeurismo capitalista de likes por minuto.
2. Neuropolítica da atenção
Neurocientistas confirmam: nossa dopamina dispara tanto pela promessa de produtividade quanto pelo ganho real. Cada notificação diz: continue girando, hamster, talvez o próximo clique te enriqueça. Jenny Odell chama isso de economia da atenção: um arranjo sistêmico que sequestra a bússola mental, lucrando sobre ansiedade e escassez.
3. A escalada performativa
Quando tudo é passível de monetização — do cochilo ao namoro, do diário íntimo ao quilômetro percorrido — abre-se a temporada do self-tracking extremo. Mapear o corpo vira macro de Excel; medir amizades, um canvas de networking. A idolatria da métrica coloniza até o lazer. Vemos séries “para poder comentar”, lemos “para linkar no LinkedIn”, viajamos “para postar”. A experiência bruta evapora; resta o highlight reel.
III · Lapidação — O que as Humanidades oferecem como antídoto
1. Filosofia antiga: escolhedores de ócio
Os gregos possuíam duas palavras para tempo: chronos — sucessões mecânicas — e kairós — o instante qualitativo. Aristóteles, no Livro X da Ética Nicomaqueia, afirma que a felicidade suprema reside na contemplação desinteressada. Para ele, o trabalho era meio; a scholé (raiz de “school”) era o fim: o espaço vazio onde a mente brinca com o universo.
2. Antropologia do “não fazer”
Em sociedades caçadoras-coletoras pesquisadas por Marshall Sahlins ou Richard Lee, membros chegam a dedicar menos de 20 horas semanais a tarefas de subsistência. O restante é papo, música, brincar. Produtividade constante é exceção histórica, não regra. O “homo faber” moderno, portanto, carrega um viés etnocêntrico: confunde necessidade com destino biológico.
3. Psicologia do fluxo
Mihaly Csikszentmihalyi mapeou experiências ótimas (flow) que ocorrem tanto em desafios intensos quanto em atividades aparentemente inúteis: tocar violão sem plateia, desenhar na areia, observar nuvens. O paradoxo: quanto menos buscamos a utilidade da ação, mais completos nos sentimos.
IV · Pontes geracionais — Como dialogar com Boomers, X, Millennials e Z
Geração | Ferida típica | Porta de entrada sugerida | Exemplo concreto |
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Boomers | Culpa por “improdutividade” pós-aposentadoria | Recuperar o ideal humanista de artes liberais | Cursos presenciais de aquarela sem avaliação |
Gen X | Pressão da carreira-sanduíche (pais & filhos) | Redescobrir hobbies “inúteis” da adolescência | Ensaiar banda de garagem todo sábado |
Millennials | Burnout crônico e side hustles | Sabático curto — 48 h offline por mês | “Fins de semana analógicos” em parques urbanos |
Gen Z | Vida sob vigilância algorítmica | Micro-atos de silêncio digital | Caminhadas de 20 min sem fones, só escuta |
V · Convite ativo — Exercícios de mandala para um tempo sem resgate
“O objetivo não é abolir a produtividade, mas salvá-la de si mesma” — Aurélio Veredas
1. Ritual da hora desmarcada
- Reserve um bloco semanal rotulado apenas “???” na agenda. Defenda-o com o zelo de uma reunião de diretoria. Faça… nada previsto.
2. Cartografia do entorno lento
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Escolha um raio de 500 m a partir de casa e percorra lente em punho, sem destino. Fotografe texturas, sons, cheiros. Depois apague as fotos; o ponto é ter olhado.
3. Mandala de areia doméstica
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Sobre a mesa, espalhe farinha ou sal colorido. Desenhe por 30 min, depois sopre ou aspire o resultado. Exercita desapego e presença.
4. Clube do atraso voluntário
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Com amigos, combinem um encontro onde não há pauta nem horário de fim. Conversa deriva até cansar. Telefone fica num cesto.
5. Gratidão inútil
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Anote, por sete noites, um ato “inútil” que trouxe alegria — ouvir o vento, empilhar pedras, cantar para o gato. Celebre-o em voz alta antes de dormir.
VI · Sopro final — De que serve uma vida “útil” que não floresce?
Se alguém lhe perguntar, como Joppich perguntou a si mesmo, por que desperdiçar tempo, responda com a grandeza simples dos monges tibetanos: o mandala que se desfaz ensina que a obra é o agora, não o troféu. E, se ainda duvidar, recorde Jenny Odell: recuperar a atenção é descobrir novos mundos — inclusive o mundo interior, esse território que nenhum KPI consegue mapear.
Em outras palavras: o futuro pertence aos que sabem pausar. Pois no intervalo brotam ideias, vínculos, respiros — a matéria-prima de toda inovação genuína. A areia que escorre entre os dedos pode, se olharmos com gentileza, virar constelação.
E chega, por ora. Fecho esta carta-ensaio como quem sopra a última linha da mandala: deixando-a partir, confiante de que algum leitor, em alguma praça, aceitará o convite de sentar sem pressa, olhar o nada e, talvez, encontrar o tudo.